Podemos definir o livro numa acepção mais ampla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação. Ou, num contexto mais moderno, segundo palavras do próprio Lucien Febvre (Martin, 1992:15): livro é o instrumento mais
poderoso de que pode dispor uma civilização para concentrar o pensamento disperso de seus representantes e conferir-lhe toda a eficácia, difundindo-o rapidamente no tecido social, com um mínimo de custos e de dificuldades. Sua função primordial é ''conferir [ao pensamento] um vigor centuplicado, uma coerência completamente nova e, por isso
mesmo, um poder incomparável de penetração e de irradiação".

(Arlindo Machado, no ensaio "Fim do livro?")

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Fernão Cardim e seu entendimento sobre o gentio

Por Cláudia de Geus Noernberg



Entre os cronistas e viajantes que estiveram no Brasil na época quinhentista, merece destaque o jesuíta Fernão Cardim, que foi uma das mais eminentes figuras da Companhia de Jesus, permanecendo quarenta e dois anos na aldeia de Abrantes, nos arredores de Salvador, aonde chegou em 1583. Em seus registros sobre os hábitos e costumes dos índios brasileiros, Cardim também revelou características dos próprios portugueses com quem tinha contato. Especialmente por sua capacidade de analisar de modo respeitoso e coerente as diferenças culturais entre os povos ameríndios e os povos europeus, conseguiu visualizar no Brasil “um novo mundo”, concepção que se refletiu em seus Tratados da Terra e Gente do Brasil, escritos entre 1583 e 1601, de modo específico naquele intitulado Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias.
Embora esta obra atualmente seja objeto de vários estudos históricos e literários, posto que preciosa fonte de informação, muito tempo transcorreu até que se tornasse conhecida, valorizada e devidamente publicada, sobretudo por não existirem provas concretas de que Fernão Cardim era realmente o seu autor. Quando da publicação, em 1881, da primeira edição do “tratado sobre os índios do Brasil”, o historiador brasileiro Capistrano de Abreu, ao apresentar a obra, teceu inúmeros comentários a respeito de como chegou à conclusão de que a autoria do manuscrito era mesmo de Fernão Cardim. Após analisar momentos da trajetória deste jesuíta, fazendo uma analogia entre o manuscrito e a Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica - esta última publicada em 1847 e já atribuída a Fernão Cardim, o historiador descobriu inúmeros pontos em comum, tanto nas informações que convergiam, quanto na forma de escrever, que revelava o estilo de Cardim. Isso lhe possibilitou destilar uma crítica sutil à falta de interesse dos estudiosos portugueses em publicar o referido manuscrito, considerado anônimo até o momento, e que permaneceu inédito em língua portuguesa até 1847, embora tenha sido publicado parcialmente em inglês em 1625, com atribuição a outro autor.
São estas as palavras de Capistrano de Abreu (1881):

O pequeno tratado sobre os índios que agora publicamos, ainda não foi impresso em português. Poucas pessoas examinaram-no em Évora, onde está o manuscrito original, e estas o não julgaram, ao que parece, digno de ser posto em circulação. Os ingleses não pensaram do mesmo modo: desde 1625 está ele traduzido em sua língua e faz parte da curiosa e raríssima coleção de Purchas. Foi aí que o lemos pela primeira vez e reconhecemos o seu interesse e seu valor.

Transcorrido mais de um século, Ana Maria de Azevedo (2009, p. 65 - 66), licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde obteve o grau de mestre com a dissertação sobre a vida e a obra do Padre Fernão Cardim, ao fazer os comentários introdutórios dos tratados na edição de 2009, define com perspicácia os méritos deste nobre jesuíta:

É notório neste autor o Homem completo, que procura captar o maior número de conhecimentos, observando tudo o que o rodeia, um humanista que procura um saber em harmonia com o viver e ainda um saber em harmonia com um novo mundo. Mas sempre um saber global, total, que consiga transmitir o maior número de informações aos seus superiores. Nele encontramos o geógrafo, que estuda a terra, o seu clima e a sua habitabilidade; o etnógrago, que descreve os povos indígenas, seus usos e costumes, com respeito e coerência; o zoólogo e o botânico, que observa com rigor a fauna e flora desconhecidas, descrevendo-as de uma forma quase visual; o cronista que traça os hábitos das populações, até mesmo os gastronômicos, e que menciona as missões dos jesuítas, os seus colégios e residências, o estado das capitanias, os seus habitantes e suas produções, o progresso ou a decadência da Colônia e as suas causas, assim como os problemas que tinham de enfrentar diariamente, alertando mesmo o poder para as questões a resolver.

A partir dessas considerações, torna-se imprescindível examinar mais atentamente os manuscritos de Fernão Cardim, com atenção especial para a sua detalhada descrição dos hábitos e costumes dos índios brasileiros.
Pelo fato de serem ágrafos, ou seja, por não possuírem língua escrita, considerou-se por muito tempo que os índios não tinham um sistema de crenças. Todavia, o testemunho dos cronistas e viajantes da época demonstrou o contrário. Cardim já inicia seu tratado sobre os índios, por ele denominados gentios, fazendo referência ao conhecimento destes sobre a ocorrência do dilúvio, embora o explicassem de modo confuso e diferente das escrituras. Afirma também que, embora os índios não tivessem conhecimento da existência do Criador, acreditavam que possuíam alma e que esta não morria. Em seguida explica que chamavam a Deus de Tupã - “pai que está no alto”, como o criador dos relâmpagos e trovões, bem como o provedor do sustento da tribo. Esses aspectos concernentes à existência ou não de um “ser criador” para os índios ainda têm sido objeto de investigação, havendo divergências entre estudiosos e etnólogos quanto ao grau de importância e quanto às atribuições de Tupã nas crenças indígenas.
Em relação aos casamentos nas tribos, existia uma preocupação especial dos jesuítas, tendo em vista ser comum entre os índios a prática da poligamia e do adultério. Isso levou os padres a tomarem a decisão de considerarem como matrimonial a união de um casal com mais de trinta anos que vivesse em comunhão com seus filhos há vários anos. Em seu tratado, Cardim (2009, p. 176-177) apresenta algumas peculiaridades a respeito da sexualidade dos índios:

Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar contrário, e perseverava virgem até que o tomasse e matasse correndo-lhe primeiro suas festas por espaço de dois ou três anos; a mulher da mesma maneira não conhecia homem até lhe não vir sua regra, depois da qual lhe faziam grandes festas; ao tempo de lhe entregarem a mulher faziam grandes vinhos, e acabada a festa ficava o casamento perfeito, dando-lhe uma rede lavada, e depois de casados começavam a beber, porque até aí não o consentiam seus pais, ensinando-os que bebessem com tento, e fossem considerados e prudentes em seu falar, para que o vinho lhe não fizesse mal, nem falassem cousas ruins, e então com uma cuia lhe davam os velhos antigos o primeiro vinho, e lhe tinham a mão na cabeça para que não arrevessassem, porque se arrevessava tinham para si que não seria valente e vice-versa.

A citação acima demonstra o quanto as anotações de Cardim se detiveram em questões que outros cronistas sequer mencionaram em seus registros. O navegador português, Pero Lopes de Souza, por exemplo, em seu Diário da Navegação, publicado em 1839, se preocupou mais em detalhar o cotidiano, o caminho que percorreu com a nau, os lugares por que passou, a situação geográfica, fazendo poucas referências aos índios, algumas inclusive errôneas, como o justificar que são muito tristes porque choram muito. No entanto, o tratado do padre Fernão Cardim (2009, p. 182-183) explica de maneira acertada o ritual do choro:

Entrando-lhe algum hóspede pela casa a honra que lhe fazem é chorarem-no: entrando, pois, logo o hóspede na casa o assentam na rede, e depois de assentado, sem lhe falarem, a mulher e filhas e mais amigas se assentam ao redor, com os cabelos baixos, tocando com a mão na mesma pessoa, e começam a chorar em altas vozes, com grande abundância de lágrimas, e ali contam em prosas trovadas quantas cousas têm acontecido desde que se não viram até aquela hora, e outras muitas que imaginam, e trabalhos que o hóspede padeceu pelo caminho, e tudo o mais que pode provocar a lástima e choro.

Um tema que interessou muito a Cardim foi o modo pelo qual os índios criavam os filhos, já que na Europa as crianças eram criadas à margem de seus pais, sendo amamentadas por amas, o que eliminava qualquer possibilidade de criação de laços afetivos entre as mães e os recém-nascidos. Ele percebeu o quanto os índios amavam seus filhos, pois jamais os deixavam, levando-os presos em tipoias para todos os lugares, sem lhes aplicar qualquer castigo, por estimarem mais fazer bem aos filhos que a si próprios. Justificou também a estima dos índios pelos padres, tendo em vista que estes ensinavam os seus filhos a ler e escrever, contar e cantar.
A antropofagia, assunto incessantemente abordado pelos cronistas em seus manuscritos, foi referenciada com tanta riqueza de detalhes, que facilmente impressionaria um leitor mais desavisado. A descrição feita por Cardim não deixa de incluir o ritual que se fazia posteriormente com o matador do inimigo, cujo sofrimento representava uma espécie de purificação para afastar de perto de si a alma do morto.
O capítulo do tratado que se refere à diversidade de nações e línguas, no qual o padre enumerou cerca de cento e quatro nações ameríndias, a grande maioria delas não mencionadas nos textos quinhentistas, estabelece algumas distinções entre dois grupos considerados principais: os Tupis e os Tapuias. Os Tupis eram os que viviam na costa do mar e falavam uma só língua, de fácil aprendizagem, sendo suscetíveis à conversão ao cristianismo, pois tinham grande admiração pelos padres da Companhia de Jesus. Já as nações de Tapuias, inimigas dos Tupis e contrárias até mesmo entre si, falavam diferentes línguas e eram de difícil conversão, sendo apenas algumas nações de Tapuias amigas dos portugueses. A partir desses dois grandes grupos, Cardim descreveu características de cada uma das subcategorias de nações ameríndias. Até o momento, nenhum estudioso conseguiu apresentar uma explicação convincente sobre a origem de todos os nomes citados por Cardim.
Não houve preocupação de incluir neste trabalho trechos da Narrativa Epistolar, de Fernão Cardim, posto que as informações nela apresentadas, quanto aos costumes e hábitos dos ameríndios, são muito semelhantes às do tratado ora analisado, sendo este último considerado mais adequado ao estudo, conforme justifica o historiador Capistrano de Abreu (1881):

Há simplesmente duas diferenças; a Narrativa foi dirigida a um amigo e nela o autor deixou seu estilo correr mais livremente, desenvolvendo certos pontos de preferência, referindo-se a objetos conhecidos pelo seu leitor; no opúsculo sobre os índios ele é mais conciso. Além disso, a Narrativa trata dos índios apenas como acidente da viagem, como adorno da paisagem; no Tratado, os índios são o objeto principal, e assim os esclarecimentos são mais condensados e encadeados uns aos outros.

Os manuscritos de Fernão Cardim contribuíram enormemente para o enriquecimento cultural nacional, servindo como valiosa fonte informativa para as gerações que se seguiram, inclusive de escritores, que se deixaram envolver pelo fenômeno nativista e o fizeram transparecer em seus textos. Convém, pois, lembrar o dizer de Alfredo Bosi (1972, p. 16), em História Concisa da Literatura Brasileira, sobre a influência positiva que a literatura de informação exerceu sobre alguns célebres escritores brasileiros:

E não é só como testemunhos do tempo que valem tais documentos: também como sugestões temáticas e formais. Em mais de um momento a inteligência brasileira, reagindo contra certos processos agudos de europeização, procurou nas raízes da terra e do nativo imagens para se afirmar em face do estrangeiro: então, os cronistas voltaram a ser lidos, e até glosados, tanto por um Alencar romântico e saudosista como por um Mário ou um Oswald de Andrade modernistas. Daí o interesse obliquamente estético da “literatura” de informação.

Finalmente, não merecem ser ignoradas as palavras de Rodolfo Garcia, um dos maiores estudiosos da obra de Fernão Cardim, em introdução à edição publicada em 1980 (apud AZEVEDO, 2009, p.10):

Quantos estudem o passado brasileiro hão de reconhecer que no acervo dos serviços prestados às nossas letras históricas existe em aberto grande dívida de gratidão para com esse meritório jesuíta. De fato, entre os que em fins do século XVI trataram das coisas do Brasil, foi Fernão Cardim dos mais crédulos informantes, em depoimentos admiráveis, que muita luz trouxeram à compreensão do fenômeno na primeira colonização do país. Foi dos precursores da nossa História, quando ainda o Brasil, por assim dizer, não tinha história. [...] Seus depoimentos são os de testemunha presencial, e valem ainda mais pela espontaneidade e pela sinceridade com que singelamente os prestou.

A valorosa contribuição histórica e literária prestada por Fernão Cardim deixa, sem dúvida, um convite inescusável a esse mergulho no passado, que não se destina apenas a teóricos, mas dirigi-se a todos aqueles que aspiram a um conhecimento mais aprofundado sobre o Brasil quinhentista e, principalmente, sobre seus primeiros habitantes. De fato, é uma leitura que não se pode dispensar.

Referências bibliográficas:
BOSI, A. A condição colonial. In:____.História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 11-29.
CARDIM, F. Tratados da terra e gente do Brasil. Disponível em: Acesso em: 08 jun.2010.
CARDIM, F. Dos princípios e origens dos índios no Brasil (introdução de Capistrano de Abreu). Disponível em: Acesso em: 11 jun. 2010.
CARDIM, F. Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica. Disponível em: Acesso em: 08 jun. 2010
SOUZA, P. L. Diário da navegação da armada. Disponível em: Acesso em: 08 jun. 2010.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

GRANDE POR NATUREZA: O BRASIL VISTO PELOS CRONISTAS

POR KELLIS COELHO FARIAS

O Brasil é uma terra de riquezas naturais que recebe a admiração de muitos povos cujos territórios não possuem tamanha variedade, beleza e extensão. O clima agradável e os lugares maravilhosos encontrados neste país, contribuem para o incentivo turístico dos próprios brasileiros, pouco conhecedores da importância que a natureza tem na história do Brasil.
É preciso ir além do simples conhecimento de que o nome Brasil vem de uma árvore chamada pau-brasil, com a qual os índios produziam uma tinta avermelhada.
As referências aos animais, às aves, muitas águas e árvores fornecem uma amostra da grandiosidade e beleza natural encontrada e registrada pelos cronistas, afinal, o impacto que a natureza brasileira causa nas pessoas, não é algo recente. A beleza dessas terras impressiona desde o início de sua história.
Documentos que registram o início da história do Brasil revelam semelhanças na descrição dessa riqueza natural, elogiada por sua variedade, qualidade e beleza, oportunizando uma reflexão sobre o tratamento recebido pela natureza atualmente.
O roteiro que norteará o levantamento das informações é formado pelas seguintes leituras:
• Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel;
• Duas Viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil, de Hans Staden;
• História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gândavo;
• Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry e
• Livro Cronistas do Descobrimento contendo, entre outros, trechos sobre As Singularidades da França Antártica, de André Thevet.
Por tratar-se de um grande número de informações, abordaremos apenas os aspectos relativos ao plantio da mandioca pelos indígenas, as grandes árvores encontradas, os frutos deliciosos e abundância de águas.

Sobre o plantio de raízes

Todas as obras citadas têm em comum a referência ao plantio de raízes (mandioca), alguns descrevendo com maiores detalhes a forma como se plantava e como era produzida a farinha de mandioca. Essas informações podem ser levantadas com a observação de alguns trechos das referidas obras.
Iniciando com a Carta de Pero Vaz de Caminha observamos uma referência ao plantio de raízes para a alimentação:

[...] Nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária que seja acostumada ao viver dos homens, nem comem senão desse inhame – que aqui há muito [...] (CAMINHA, 1500).

O que fora constatado por Caminha com relação à existência farta dessa raiz, é confirmado por Hans Staden quando, refere-se à maneira como os indígenas preparavam as raízes, conforme o texto a seguir:

[...] enterram as mudas das plantas de raízes, que usam como pão, entre as cepas das árvores. Essa planta chama-se mandioca. É um arbusto que cresce até uma braça de altura e cria três raízes. Quando querem preparar as raízes, arrancam o arbusto, retiram as raízes e os galhos e enterram novamente pedaços do tronco. Estes, então, geram raízes e crescem em seis meses, o necessário para que se possa consumi-los. (STADEN, 2008, p.142).

Conforme a citação acima, verificamos que na obra de Hans Staden a descrição feita pelo autor não está restrita apenas ao modo de alimentação, mas inclui a informação da maneira pela qual os habitantes da terra a cultivavam.
Na obra de Pêro de Magalhães Gândavo encontramos também referência ao plantio e cultivo da mandioca, concordando com os trechos já citados. Abaixo segue um exemplo:

Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós: quando a querem plantar em alguma roça cortão-na e fazem-na em pedacos, os quaes metem debaixo da terra, depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro raízes [...]. (GÂNDAVO,1980,cap. V).

Observamos no trecho citado acima a semelhança na narrativa da descrição do plantio da mandioca entre Hans Staden e Gândavo.
Informação semelhante é encontrada na obra de André Thevet, a qual faz menção da raiz muito comum e bastante consumida pelos moradores da terra, conforme o trecho a seguir:

[...] por terem eles grande abundância dessa raiz, quase não comem outra coisa, ela é tão comum entre eles quanto o pão é para nós.
Dessa raiz encontram-se duas espécies do mesmo tamanho. A primeira, depois de cozida, fica amarela como o marmelo; a outra, fica esbranquiçada. E essas duas espécies têm folha semelhante ao maná e nunca dão sementes. Por isso, os selvagens plantam de novo a mesma raiz cortada em rodelas (...) que se multiplica em abundância. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p. 61).

egundo a citação mencionada anteriormente, confirma-se que o cultivo e o consumo da mandioca era uma prática comum dos indígenas. Esse fato também é relatado por Jean de Léry, de acordo com um trecho de sua obra Viagem à terra do Brasil, encontrada no livro Cronistas do Descobrimento:

No referente aos campos e às terras, cada pai de família terá também algumas jeiras à parte, que ele escolhe onde quer, segundo sua comodidade, para fazer roça e plantar suas raízes [...] (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p.70).

Com a contribuição dessa citação, fica evidente pelo relato unânime dos cronistas, que a principal fonte de alimentação dos índios vinha do plantio da mandioca, comparado ao consumo habitual de pão daqueles que chegaram ao Brasil. Alguns relatando de forma mais detalhada, outros mais resumidamente, no entanto, todos abordam a questão do plantio dessas raízes tão comuns no país.

Sobre as árvores

As árvores chamaram a atenção dos autores pelo seu porte e utilidade.
Na Carta de Pero Vaz de Caminha, observamos que as árvores encontradas foram citadas pelo seu grande porte, conforme o trecho abaixo:

[...] houvemos vista de terra, a saber: primeiramente, de um grande monte mui alto e redondo; de outras serras mais baixas, ao sul dele; e de terra chã (plana), com grandes arvoredos [...](CAMINHA, 1500).

Também de Caminha, a citação abaixo concorda com a anterior, informando sobre os grandes arvoredos que aqui se destacam pela vasta quantidade:

Alguns diziam que viram rolas, mas eu não as vi; mas como os arvoredos são muitíssimos, grandes e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves. (CAMINHA, 1500).

Com relação às árvores, além de Caminha, acima mencionado, outro autor cita em sua obra esse aspecto da natureza encontrada. É o caso de Hans Staden que fez seu registro da seguinte forma ao valorizar o aspecto visual:

A América é uma terra extensa. (...) Tem um aspecto aprazível. As árvores estão sempre verdes. (STADEN, 2008, p. 133).

Ainda na obra de Staden, ao se referir às árvores, além da cor, o autor descreve uma determinada espécie utilizada para o transporte dos índios. O trecho abaixo esclarece tal utilidade:

Existe lá um tipo de árvore a que chamam de Igá-ibira. As cascas dessa árvore desprendem-se de cima até embaixo num único pedaço, e, para tanto, eles erigem uma proteção especial em torno da árvore, de forma a que se desprenda inteira. Em seguida pegam a casca e levam-na da montanha até o mar. Aquecem-na com fogo e curvam-na para cima na frente e atrás, mas antes disso amarram no centro pedaços de madeira no sentido transversal, para que não deforme. Assim fazem canoas em que até trinta deles podem ir à guerra. (STADEN, 2008, p.156-157).

As árvores que chamaram a atenção de Hans Staden pela beleza e utilidade, são descritas sob outro olhar na obra de Pêro de Magalhães Gândavo. Primeiramente, registrando a manifestação da natureza devido à existência de muitas árvores:

[...] e quando amanhece as mais das vezes està o Ceo todo coberto de nuvens, e assi as mais das manhãs chove nestas partes, e fica a terra toda coberta de nevoa por respeito de ter muitos arvoredos que chamão a si todos estes humores. (GÂNDAVO, 1980, cap. II).

Além da grande quantidade causadora de névoas, uma função medicinal é citada pelo autor. Esse é outro aspecto abordado, conforme o trecho a seguir:

Hum certo genero de arvores ha tambem pelo mato dentro na Capitania de Pernambuco a que chamam Copahibas de que se tira balsamo mui salutifero e proveitoso em extremo, para enfermidades de muitas maneiras [...]. (GÂNDAVO, 1980, cap.V).

Gândavo citou, além dessa primeira espécie usada para fins medicinais, uma outra, também utilizada na fabricação de um bálsamo. A evidência disso é o seguinte trecho:

Outras arvores differentes destas ha na Capitania dos llhéos, e na do Spirito Santo a que chamão Caborahibas, de que tambem se tira outro balsamo: o qual sae da casca da mesma arvore, e cheira suavissimamente. Tambem aproveita para as mesmas enfermidades [...]. (GÂNDAVO, 1980, cap. V).

Após a descrição de Pero de Magalhães Gândavo em suas observações sobre o uso medicinal da natureza, citamos o registro de André Thevet, descrevendo a conhecida atualmente como bananeira:

E como estamos falando de árvores, descreverei mais uma, não para ampliar este relato, mas sim movido pela grande virtude e incrível singularidade das coisas, pois nada de semelhante se encontra na Europa, na Ásia ou na África. Trata-se de uma árvore que os selvagens chamam de pacuer, porventura a mais admirável que se possa encontrar. Em primeiro lugar, do chão à rama, não tem ela mais de uma braça de altura, aproximadamente, e seu tronco tem uma grossura tal que um homem pode cingi-lo com as duas mãos. Isso, entenda-se, depois de crescida. E seu caule é tão macio que pode ser cortado facilmente com uma faca. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p. 62).

De acordo com a citação acima, sobre a impressão de Thevet, a natureza brasileira causa admiração por suas incríveis características. As árvores grandiosas e tão admiradas estão registradas nessas obras de várias formas.
Um exemplo importante sobre descrição da natureza é a que trata da árvore que dá nome ao país. A obra de Jean de Léry descreve a árvore do pau-brasil, conforme o exemplo abaixo:

Ao falar das arvores deste paiz devo começar pela mais conhecida entre nós, esse pau-brail de que a terra, por influencia nossa, tomou o nome e é tão apreciado graças á tinta que delle se extrahe. Os selvagens o chamam arabutan. Notamos que é arvore que engalha como o carvalho das nossas florestas, havendo algumas tão grossas que tres homens não lhes abraçariam o tronco. (LERY,1880, cap XIII).

Com a citação acima, juntamente com a demais sobre a natureza do Brasil representada pelas árvores, é interessante notar a riqueza de informações registradas, das mais diversas formas e ênfases, evidenciando a grande variedade de árvores encontradas pelos cronistas.

Sobre os frutos

a qualidade dos frutos encontrados nas terras do Brasil também foi registrada pelos cronistas, juntamente com uma informação que apresenta a relação tempo-natureza.
Pero Vaz de Caminha fez uma referência à qualidade dos palmitos encontrados, conforme o trecho a seguir:

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há mui bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles. (CAMINHA, 1500).

Sob um olhar diferente em relação ao de Caminha, as frutas são mencionadas por Hans Staden como uma referência de tempo para os índios. Maiores detalhes podem ser observados com a citação abaixo:

Quando querem empreender uma expedição guerreira no território do inimigo, os chefes reúnem-se e discutem como isto deve ser feito. Informam os homens em todas as cabanas para que se armem e, nessa ocasião, mencionam uma espécie de fruta de uma árvore; partem quando a fruta amadurece, pois não conhecem nem os anos nem os dias. (STADEN, 2008, p. 158).

Conforme o aspecto abordado por Staden na citação acima, além do uso para a alimentação, as frutas tinham o importante papel de marcar o tempo para os indígenas, possibilitando assim a organização de seus planos de guerra.
Já na obra de Pero de Magalhães Gândavo, encontramos uma informação sobre a existência de pessoas alimentadas durante dias apenas por frutas. O trecho a seguir mostra:

Outras muitas fruitas ha nesta Provincia de diversas qualidades comuns a todos, e são tantas que já se acharão pela terra dentro algumas pessoas as quaes se sustentavão com ellas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo, são as que os portuguezes têm entre si em mais estima, e as melhores da terra. (GÂNDAVO, 1980, cap, V).

Além da fartura vista por Gândavo, garantindo inclusive a sobrevivência, as frutas impressionaram outro autor, André Thevet, que registra a sua opinião sobre a excelente qualidade dos frutos encontrados, conforme o seguinte trecho:

Quanto ao território de toda a América, é muito fértil em árvores que dão frutos excelentes [...]. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p. 60).

Esses frutos excelentes citados por Thevet recebem elogios também na obra de Léry, conforme o seguinte trecho encontrado:

Vendo-nos mais refeitos, mandaram incontinenti servir, à sua moda, ótimas carnes, como veação, aves, peixes e frutos deliciosos, que nunca lhes faltam. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p.78).

Deliciosos frutos citados acima, que impressionaram também por sua variedade. Todos os autores registraram as características que tornavam esses frutos tão especiais e pelos quais eles tinham grande estima. Frutos que demonstram todo o potencial da natureza existente.

Sobre as águas

As águas existentes no Brasil chamaram a atenção dos cronistas pela sua grande quantidade. A beleza dos rios também foi registrada por esses autores.
Na Carta de Pero Vaz de Caminha as águas foram mencionadas pela quantidade de água, conforme o trecho a seguir:

Passaram um rio que corre por aí, de água doce e de muita água, que lhes dava pela braga, e muitos outros com ele. (CAMINHA, 1500).

Além da informação acima sobre a existência de muita água no Brasil, a Carta de Caminha apresenta-nos mais outro:

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. (CAMINHA,1500).

As águas do Brasil citadas na Carta de Pero Vaz de Caminha pela abundância e qualidade, encontraram lugar também na obra de Hans Staden por sua beleza e quantidade. Pode-se notar isso, com o trecho a seguir:

Entre as montanhas há numerosos e belos cursos de água, onde há caça em abundância. (STADEN, 2008, p.134).

Com essa citação, é possível verificar que as águas faziam parte de vários outros aspectos que marcavam a natureza do país, como por exemplo, a farta existência de caça.
Pero de Magalhães Gândavo refere-se às águas como infinitas, registrando a existência de rios existentes, conforme a citação a seguir:

As fontes que ha na terra sam infinitas, cujas agoas fazem crescer a muitos e mui grandes rios que por esta costa, assi da banda do Norte, como do Oriente, entram no mar Oceano. (GÂNDAVO, 1980, cap. II).

Além do registro sobre os rios por Gândavo, as águas aparecem na narrativa de André Thevet, apontando para a sua extensão. O trecho abaixo é um exemplo disso:

São essas terras situadas realmente entre os trópicos, indo além do Trópico de Capricórnio, confinando do lado ocidental com Temistitã e as Molucas; ao sul, com o estreito de Magalhães, e dos dois lados com o Mar Oceano e o Pacífico. É verdade que perto de Daren e Furna a terra é muito estreita, pois o mar a adentra muito dos dois lados. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p.60).

O trecho anteriormente citado demonstra a noção de extensão percebida por Thevet.
Já na obra de Léry, destacamos seu registro quanto à formosura dos rios, segundo o trecho a seguir:

Na terra firme que rodeia este braço de mar existem, ao fundo, mais dois formosos rios d'agua doce, affluentes d'aquelle, nos quaes naveguei com outros patricios por uma vinte leguas interior a dentro, parando nas muitas aldeias de selvagens que alli existem dum lado e de outro. (LERY, 1880, cap. VII).

Pela citação acima, notamos o registro da beleza dos rios existentes feita por Léry, concordando com os demais cronistas ao relatarem sobre a formosura dos rios, águas doces e muita água encontrada.
Ao registrarem suas impressões, mesmo que sob olhares diferentes, os cronistas apontaram em suas obras a força que possui a natureza brasileira: na variedade das árvores, dos frutos, a abundância da águas, o plantio e sustento dos índios etc. Muitas outras informações são levantadas pelos cronistas e com ricos detalhes, abrangendo também a caça, os animais e o modo de vida dos povos que habitavam as terras do Brasil.
Todas essas considerações a respeito das grandezas naturais têm a finalidade de evidenciar a força da presença diversificada e extravagante em cores e espécies, caracterizando o país. E tudo isso já acontece há muito tempo, entretanto, as pessoas têm deixado de reconhecer essa riqueza natural.
A natureza que no passado, impressionou homens desbravadores, atualmente sofre os maus tratos de um povo que não cuida e nem valoriza algo que desde o princípio de sua história tem caracterizado essa nação: a natureza exuberante.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

O ÚLTIMO SUSPIRO

POR FÁBIO AUGUSTO STEYER



Bruno não é daqueles caras que metem bronca com tudo. É tranqüilo. Até demais. Mas aquela situação era completamente insustentável...
Tem dias em que tudo dá errado. E foi o que aconteceu naquela terça-feira, véspera de feriado.
Foi um dia de “anti-herói”, e Bruno se sentiu Macunaíma diante de tal acontecimento. Tá bom... Macunaíma, não. Talvez Dom Quixote... Cada um escolhe a personagem que melhor representar o drama encenado naquele que é o mais interessante palco de todos: a platéia.
Um detalhe que não podemos deixar de fora da história: nosso protagonista tem uma mania um tanto inusitada: é completamente viciado por suspiros!!! Bruno é capaz de qualquer coisa para conseguir um pacote deles. Chega a lamber os beiços, a salivar quando vê aqueles flocos nevados de açúcar, montanhas de gelo a provocar – coma-me! -, a transformar a razão em sentimento mais passional e ardoroso do que o de torcedor fanático em dia de clássico no futebol.
Bruno é assim. Um sujeito tranqüilo. Que devora suspiros como ninguém neste mundo. Sempre acompanhados de Fanta light. É verdade. Talvez a bebida seja o mais estranho desse vício. Sem Fanta light não tem suspiros. Não tem graça...
Pois foi assim que tudo começou.
Bruno foi ao supermercado, comprou um pacote de suspiros e um litrão de Fanta light e foi para o Cine Palladium, que naquela inspirada semana (real ou fictícia, isso ninguém sabe) estava exibindo uma retrospectiva do Fellini. O filme era “A Doce Vida”, com Marcelo Mastroianni e Anita Ekberg.
Sala vazia, véspera de feriado, dia ideal para um programa cinematográfico.
Mas aquela situação era completamente insustentável...
Luzes apagadas, filme em exibição e Bruno mastigava incansável os seus suspiros. O ranger dos dentes sobre os montes alvos e gorduchos só era interrompido pelos ávidos goles de Fanta light e pelos devaneios da bela moça na fila da frente, que suspirava toda vez que Mastroianni aparecia na tela, desviando a atenção de Bruno.
Ao arranjo gastronômico e amoroso que ritmava as ações de Bruno, enfastiado com os suspiros, e da menina que platonicamente devorava o olhar do galã italiano, veio se juntar um novo e perturbador elemento: na primeira fila, um casal de meia idade fazia amor, no chão, sob as luzes e sombras projetadas da tela em toda a sala de exibição. Roupas esvoaçantes e sussurros de glória e dor harmonizavam a coreografia daquela dança provocante e sinfônica, intensificando o estarrecimento dos espectadores das fileiras mais próximas.
Bruno é um cara tranqüilo. Até demais. Mas aquela situação era completamente insustentável...
Ele olhava para a moça em sua frente e ela parecia não perceber nada, hipnotizada pela cena de amor de Anita Ekberg e Mastroianni na Fontana di Trevi.
Mastigava seus suspiros, bebia sua Fanta light e estava completamente perturbado com aquele casal transando assim, descaradamente, na primeira fila do cinema.
E a moça não fazia absolutamente nada...
De repente, Bruno viu diante de si um suspiro gigante, que vinha em sua direção. Ameaçador, ele tinha olhos vermelhos e ovalados, e chegava cada vez mais perto. Bruno não via mais nada em seu redor, apenas o suspiro enorme, branco, sobre seu corpo, fazendo amor e sussurrando mensagens completamente inadequadas para um texto literário de respeito.
Prestes a atingir o ápice daquele momento, Bruno gritou:
- Cheeeegaaaa!!!!!
Por alguns segundos todo o cinema parou.
O casal da primeira fila interrompeu o ato e olhou para trás.
A bela moça da poltrona em frente olhou para Bruno.
Ele corou.
Ela desviou seu olhar para a Fontana di Trevi e suspirou profundamente.
Bruno encheu as narinas de ar e lentamente soltou pela boca.
Pediu desculpas para si mesmo e riu. Um riso amargo e com uma pontinha de ironia.
Enfiou a mão no pacote de guloseimas. Só havia sobrado um.
Então comeu o último suspiro, bebeu o resto da Fanta light e foi embora, pensando no ciclo de Hitchcock que começaria na semana seguinte.

sábado, 10 de julho de 2010

O MAR E O AMANHECER

POR FÁBIO AUGUSTO STEYER




Era o vaivém das ondas
marcando o sono distante,
as horas longas de espera
os passos presos no instante.

Era o pulsar das horas
soprando areia no sonho,
em concha quase tapera,
canção de um vazio tristonho.

Era o barulho das conchas
regendo vil maresia,
violas mudas e tensas
inquietas na calmaria.

Era o som das violas
dentro de mim,
retumbando assim,
retumbando sim...
Era o som das violas,
pra não sofrer,
retumbando a dor até morrer,
retumbando assim,
retumbando sim...
entre o mar e o amanhecer.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

A NUDEZ DO ÍNDIO VISTA PELOS CRONISTAS DO DESCOBRIMENTO

POR YARA FERNANDA NOVATZKI
Acadêmica do 2º ano de Letras Português-Inglês. Ponta Grossa-PR

Contato: yarafernandan@hotmail.com

A Literatura de Informação ou Quinhentismo foi um movimento que surgiu no século XVI, na época em que o Brasil foi descoberto, quando os viajantes vieram para cá por meio das grandes navegações, com toda a ganância da expansão marítima, conquistas e dominações de novos territórios, tentando ganhar espaço e novos adeptos ao seu modo de viver. E foi aqui que encontraram o que realmente eles queriam, um “prato feito”, pronto para a apropriação dos Portugueses.
Admirados com todas as belezas encontradas aqui, os que eram testemunhas de tal acontecimento passaram a fazer relatórios, documentos e cartas para descrever, noticiar e exaltar a exuberância da fauna, da flora, dos habitantes e das riquezas que aqui se encontravam, de forma a apresentar aos seus superiores, em Portugal, a respeito do Novo Mundo que haviam encontrado.
Estes textos escritos só foram traduzidos e publicados a partir do século XIX, por falta de estruturas que viabilizassem tal feito e pelas poucas condições que havia para a impressão dos livros. Antes disso, para que as pessoas conhecessem as histórias que os livros continham, eles eram reproduzidos através de cópias manuscritas feitas, por exemplo, pelos monges.
A linguagem usada pelos autores na época era bastante estilizada, contendo inúmeros adjetivos e muita criatividade por parte dos autores, de modo que apresentavam na escrita muita riqueza e precisão de detalhes, sendo fiéis ao máximo a respeito do que estavam vendo e sentindo.
Dentre os principais autores que se destacaram naquela época, mencionarei apenas cinco deles, Pero Vaz de Caminha, Hans Staden, André Thevet, Gabriel Soares de Sousa e Fernão Cardim identificando, dentre muitas coisas que eles escreveram, a respeito de como viam a nudez dos índios.
O primeiro autor a ser abordado é Pero Vaz de Caminha, que veio para o Brasil com o título de escrivão da armada. Foi autor de uma importantíssima carta escrita para El Rei D. Manuel, a respeito das primeiras impressões tidas do Brasil. Esta carta foi escrita entre os dias 26 de abril e 1º de maio de 1500, e é considerada o primeiro documento escrito da História do Brasil, em forma de relatório, apresenta uma ordem cronológica e clareza dos fatos narrados.
Como muitos autores da época, certamente, o que mais chamou a atenção e causou maior estranheza aos Portugueses que aqui chegaram, foi, a primeira vista, o modo como os indígenas se “vestiam”.
Essa primeira impressão gerou constrangimento e indignação diante da nudez dos índios, e isso é relatado de forma bem explícita em vários trechos da carta escrita por Caminha para El Rei, como pode-se perceber:

 “[...] homens pardos, todos nus, sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas.” (CAMINHA, 1500, p. 2)

A feição deles é serem pardos, [à] maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem nenhuma cobertura, nem estimam cobrir nenhuma coisa, nem mostrar suas vergonhas: acerca disso, estão em tanta inocência como tem em mostrar o rosto. (CAMINHA, 1500, p. 2)

Percebe-se que as maneiras como os índios se portavam diante dos portugueses eram vistas como algo que incomodava, era inadmissível para quem era membro de uma sociedade em que as roupas, na maioria das vezes, eram as que denunciavam qual era o nível social que a pessoa se encontrava, como no caso de Caminha.
Acredito que era por isso que os índios eram tratados pelos Portugueses, devido à influência da carta de Caminha, como inocentes, pois, eram “donos” de tantas riquezas presentes ali e não se davam conta, por causa dos seus costumes de andarem nus, de tal realidade. E como os índios, segundo os Portugueses, talvez não tivessem tanta capacidade para administrar todas estas riquezas, logo os Portugueses, por interesses próprios, passariam a tomar conta de tudo.
Em relação ao tratamento dado às índias, mulheres e moças, soou de forma diferenciada esta visão que Caminha tinha a respeito dos índios (homens), me pareceu mais a vontade ao ver as índias nuas. Como se pode notar a seguir:

"Entre eles ali andavam três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas e tão cerradinhas, e tão limpas das cabeleiras, que de nós muito bem olharmos não tínhamos nenhuma vergonha. [...]. Uma daquelas moças era toda tinta daquela tintura, de fundo acima, a qual, certo, era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha, que ela não tinha, [era] tão graciosa que a muitas mulheres da nossa terra -vendo-lhe tais feições- faria vergonha, por não terem a sua como ela." (CAMINHA, 1500, pp. 04-05)

Foi bem ousado ao fazer estes comentários, chegando até a comparar a “beleza” “superior” da índia em relação às mulheres portuguesas, ficando evidente que estava gostando e admirando tudo aquilo que estava vendo. E como Caminha era católico, e a imagem do corpo nu era símbolo do pecado, ele por um instante ao admirar as “vergonhas” das índias se deixou cair em pecado, deixando transparecer o seu lado mais malicioso.
Por não aceitar este tipo de atitude, andar nu, não aceitar os costumes que os índios tinham, Caminha tenta de alguma forma fazer com que eles se “vistam” com os costumes dos brancos, com roupas descentes, para que se adaptem a viver conforme os Portugueses estão acostumados. Percebe-se isso nos seguintes trechos:

“[...] deu-lhes um barrete vermelho e uma carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro preto.” (CAMINHA, 1500, p.2) e “Deu-lhe [o capitão] uma camisa mourisca; ao outro, uma camisa dessas outras.” (CAMINHA, 1500, p. 13).

"Dos que o capitão trouxe, um deles era um dos seus hospedes, que, à primeira [vez], quando aqui chegamos, lhe trouxeram –o qual veio hoje aqui vestido com a sua camisa- e com ele o seu irmão, os quais, nessa noite, foram mui bem agasalhados, assim de vianda, como de cama, de colchões e lençóis, para mais os amansar." (CAMINHA, 1500, p.12)

Insistentemente, devido à “inocência” do índio, queriam mudar o modo como eles andavam. Tentando empregar uma cultura que não fazia parte da realidade em que viviam, tentando torná-los civilizados, mas com resultados não muito satisfatórios: “[...] os quais [os índios] vinham já nus e sem carapuças” (CAMINHA, 1500, p. 4), como escreve o próprio Caminha.

Isso fica evidente em um pequeno poema escrito por Oswald de Andrade que retratou exatamente o que aconteceu naquele momento do descobrimento, e que deixou resquícios identificados até hoje a respeito dos índios, que diz:

"Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena !
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português"

Foi possível perceber, analisando alguns fragmentos da obra de Pero Vaz de Caminha, o quanto a nudez do índio incomodou, de certa forma, a visão que ele teve do Brasil, e que expressou plenamente na Carta enviada ao Rei.
Apesar de relativamente curta, grande parte da carta apresenta trechos voltados para o lado de como os índios “se vestiam”, de como andavam pintados e de como se portavam na presença dos Portugueses, evidenciando aí, a indignação dos corretamente vestidos (Portugueses) diante da ingenuidade daqueles que eram vestidos de vergonha (os índios).
Outro autor de grande importância é Hans Staden, um grande aventureiro que fez duas viagens para o Brasil. Na primeira, veio como artilheiro numa nau até Pernambuco, e depois retornou até Lisboa, na segunda, veio incorporado à armada, mas, o navio em que se encontrava naufragou, então ele foi capturado por uma tribo de índios canibais chamados de Tupinambás.
Permaneceu com eles por cerca de nove meses sendo considerado refeição para os canibais, aprendendo um pouco dos seus costumes, até ser resgatado mais tarde por um navio francês, voltando novamente para a Europa.
Com estas aventuras ele escreveu um livro chamado “Duas viagens ao Brasil”, que foi organizado de forma bem objetiva, contando sobre a sua viagem e a descrição do modo de vida dos nativos, o que faz com que a sucessão de peripécias vividas por ele envolva o leitor.
A respeito da nudez do índio, percebe-se claramente a diferença existente entre o que o Staden e o Caminha escrevem. Hans trata a nudez naturalmente, não julga o modo como os índios se vestiam, apenas descreve aquilo que vê diariamente no tempo em que permaneceu no meio deles.
Vejamos no trecho a seguir a naturalidade com que fala da nudez ao descrever o que tinha visto aqui no Brasil:

“As árvores estão sempre verdes. Lá não crescem madeiras parecidas como as nossas madeiras de Hessen. Os homens andam nus. Na parte da terra que fica entre os trópicos [...]” (STADEN, 2008, p.133).

Sem nenhum tipo de espanto, ele fala do modo como se vestiam, apenas menciona, porque certamente era algo que não poderia passar despercebido, já que de onde vinha isso não era algo comum.
O que pode ter ajudado ele a não maliciar, não causar espanto no modo como os índios viviam, ao escrever o livro, foi o fato de ele ter tido que conviver com eles por um tempo, e se envolver com os costumes que os índios empregavam diariamente, então, já estava acostumado com a nudez.
Em outra parte do seu livro, quando descreve a aparência das pessoas fala normalmente como se aquilo que ele viveu com os índios já tivesse fazendo parte da sua rotina diária, pois, passa uma idéia de aceitação diante da situação:

"São pessoas bonitas de corpo e estatura, tanto homens quanto mulheres, da mesma forma que as pessoas daqui, exceto que são bronzeados pelo sol, pois andam todos nus, jovens e velhos, e também não trazem nada nas partes pubianas."( STADEN, 2008, p. 140)

Nota-se que não tem nenhuma malicia ou algum tipo de preconceito diante da nudez, tanto que iguala os homens e as mulheres daqui com os de Portugal.
Em toda sua obra, que é um pouco extensa, parece que a nudez não foi algo que lhe chamou mais a atenção durante o período que permaneceu aqui no Brasil, pois foi difícil encontrar trechos que expressassem esta idéia. Hans Staden deu prioridades a outras coisas, principalmente a antropofagia, que era algo que ele estava sujeito constantemente enquanto estava no meio dos Tupinambás.
Ainda no trecho sobre a descrição da aparência das pessoas pode perceber-se sutilmente que ele era a favor realmente da naturalidade, da nudez com que os índios se apresentavam, como se não admitisse que nenhuma outra “cultura” fosse inserida no modo de vida do indígena.
Falo isso porque ao descrever sobre a pintura que os índios faziam sobre os seus corpos ele diz: “Mas desfiguram-se eles mesmos com a pintura.” (STADEN, 2008, p.140) (grifo meu). Como se a pintura, por mais que fizesse parte dos seus costumes, pudesse apagar, alterar de alguma maneira, um pedaço da cultura dos índios, ficando subentendido o respeito com que via a nudez do indígena.
Já André Thevet via a nudez do indígena de uma forma bem diferente. Ele foi um viajante estrangeiro católico, vindo da França para instalar aqui no Brasil uma espécie de colônia francesa, chamada França Antártica, com a finalidade de investigar sobre as riquezas e as possibilidades que a terra aqui encontrada apresentava.
Permaneceu no Brasil durante dois meses. Meses suficientes para escrever seu livro, chamado “As singularidades da França Antártica”, obra em que relata sua aventura e faz a descrição daquilo que conheceu aqui. Sua escrita tem um estilo simples e objetivo, mas, apesar disso, algo que é encontrado constantemente em sua obra são erros, concepções errôneas e citações de autores para demonstrar erudição, mas, era algo que não possuía.
Quanto aos costumes dos indígenas, de um modo geral, tem uma visão extremamente preconceituosa, como se pode perceber no fragmento a seguir:

“[...] esta terra foi e é ainda habitada por gente prodigiosamente estranha e selvagem, sem fé, sem lei, sem religião, sem civilidade nenhuma, que vive como os animais irracionais, do modo como a natureza a fez, comendo raízes, andando sempre nua (tanto homens quanto mulheres), e isso talvez até que, convivendo com os cristãos, aos poucos se despoje dessa brutalidade, passando a vestir-se de modo mais civilizado e humano.” (OLIVIERI & VILLA, 2009,p. 70)(grifo meu).

Como se pode constatar, a nudez do indígena era para Thevet algo sem explicação que deveria ser corrigido conforme o modo com que os cristãos estavam acostumados a se vestir, descentemente. Foram tratados como seres irracionais, só porque tinham costumes diferentes daqueles que eram brancos e cristãos.
Nota-se na linguagem usada por Thevet, um tom de aversão quando se refere que a nudez fazia parte tanto da vida dos homens quanto das mulheres, que isso só poderia ser banido com a convivência com eles, os brancos, em que seria imposta uma nova cultura para que eles seguissem e se tornassem “mais civilizados e humanos” (OLIVIERI & VILLA, 2009, p. 70).
Chamou-lhe a atenção até o modo como viviam pintados, logo se tornando alvo de críticas, como pode-se perceber:

 “Para cúmulo da deformidade, os homens e as mulheres passam a maior parte do tempo tingidos de negro...” (OLIVIERI & VILLA, 2009, p. 75).

"Como se não lhes bastasse viver nus, pintar o corpo com diversas cores e arrancar-se os pelos, os selvagens também se tornam ainda mais disformes porque, quando ainda jovens, furam os lábios com certa planta muito aguçada." (OLIVIERI & VILLA, 2009, p.74).

Existe aí uma falta de respeito muito grande em relação à cultura dos indígenas, considerando-os deformados e não aceitando os rituais existentes em sua cultura. Thevet só viu coisas negativas nos indígenas durante o pequeno período de tempo que permaneceu aqui no Brasil, dois meses, e ainda os considera como americanos deformados e desfigurados, como se eles não tivessem uma identidade própria.
E ainda abusa quando se refere aos enfeites que utilizavam dizendo: “fazendo no rosto grandes orifícios onde põem pedras graúdas, com o que sentem tanto prazer quanto um senhor daqui em usar jóias ricas e preciosas” (OLIVIERI & VILLA, 2009, p. 75). Fala num tom de ironia, como se o indígena não tivesse o direito de ter algum tipo de prazer que não fosse o que era vivenciado pelos brancos.
Em todos os trechos abordados percebe-se claramente o grande preconceito com que André Thevet tratava os índios, sem nem sequer dar valor a riqueza e perfeição com que Deus havia feito os índios, já que ele se dizia tão católico assim.
Gabriel Soares de Sousa veio para o Brasil com uma expedição. Apaixonou-se pelas terras daqui, mais precisamente pela Bahia, e resolveu permanecer aqui, se tornando, mais tarde, um próspero senhor de engenho, pois, explorava as minas de ouros e diamantes presentes nos arredores da região da Bahia.
Em seis anos que permaneceu aqui, escreveu o livro “Tratado descritivo do Brasil”, uma espécie de enciclopédia, em que registrava as observações que fazia a respeito da natureza e do homem do Brasil, um tipo de propaganda detalhada e exagerada das virtudes e potencialidades da terra, com a intenção de atrair pessoas e investimentos para cá.
Quanto ao tratamento dado aos índios, ele descreve de forma bastante detalhada tudo a respeito da vida, dos costumes e das lutas diárias de várias tribos, como os tupinambás, os tamoios, os papanases, os goitacases etc, com a intenção de fazer com que as pessoas conhecessem melhor os seus costumes.
Em relação à nudez, assim como Hans Staden, apenas descreve a forma com que andavam, falando naturalmente, sem se ater a malícias e julgamentos, como nota-se nos seguintes trechos:

“[...] Papanases: andam nus como o mais gentio, não consentem cabelos nenhuns no corpo, senão os da cabeça, pintam-se e enfeitam-se com penas de cores dos pássaros.”( SOUSA, 1851,p.96).

"Os tupinambás são homens de meã estatura, de cor muito baça, bem feitos e bem dispostos, muito alegres do rosto, e bem assombrados; todos têm bons dentes, alvos, miúdos, sem lhes nunca apodrecerem; têm as pernas bem feitas, os pés pequenos; trazem o cabelo da cabeça sempre aparado; em todas as outras partes do corpo os não consentem e os arrancam como lhes nascem." (SOUSA, 1851, p.300).

Referente aos costumes dos índios ele escreve:

“Costuma este gentio (Carijós) no inverno lançar sobre si umas peles da caça que matam, uma por diante, outra por detrás;”( SOUSA, 1851, p.119) e “[...] os quais (Tupinambás) cobrem os membros genitais com alguma coisa por galantaria, e não pelo cobrir.”(SOUSA, 1851, p.305).

"E em conversação não sabem falar senão nestas sujidades, que cometem cada hora; os quais são tão amigos da carne que se não contentam, para seguirem seus apetites, com o membro genital como a natureza formou; mas há muitos que lhe costumam pôr o pêlo de um bicho tão peçonhento, que lho faz logo inchar, com o que têm grandes dores, mais de seis meses, que se lhe vão gastando espaço de tempo; com o que se lhes faz o seu cano tão disforme de grosso, que os não podem as mulheres esperar, nem sofrer; e não contentes estes selvagens de andarem tão encarniçados neste pecado, naturalmente cometido, são muito afeiçoados ao pecado nefando, entre os quais se não têm por afronta; e o que se serve de macho, se tem por valente, e contam esta bestialidade por proeza; e nas suas aldeias pelo sertão há alguns que têm tenda pública a quantos os querem como mulheres públicas." (SOUSA, 1851, p.308-309)

Retrata literalmente aquilo que viu enquanto permaneceu aqui no Brasil de forma bem detalhada. Como mero observador, tentou passar suas melhores impressões, seguindo a risca tudo aquilo que viu e percebeu sobre os costumes dos indígenas. Esta espécie de “retrato” fez com quem lesse sua obra se aproximasse da realidade que era encontrada aqui, com a finalidade de convencer as pessoas do quanto era boa a vida por aqui.
E finalmente o último autor, também de importância significativa foi Fernão Cardim, padre jesuíta vindo de Portugal como acompanhante de um visitador para conhecer as terras brasileiras.
Permaneceu aqui no Brasil por bastante tempo, tempo este em que escreveu o livro “Tratados da Terra e Gentes do Brasil”, obra em que descreve exageradamente tudo a respeito da cultura, da religião, da etnografia, etc encontradas aqui no Brasil.
Em relação ao modo de vida do indígena faz uma espécie de guia, falando a respeito de tudo que envolvia o modo de vida do indígena, como o que eles comiam, bebiam, como eram suas casas, como recebiam os hóspedes, como se vestiam etc.
No modo de como os índios se vestiam Fernão Cardim ao mesmo tempo em que é bastante descritivo, fala de modo natural, sem julgamentos, com o intuito apenas de apresentar a vida dos indígenas aos leitores. Como percebe-se a seguir:

“[...] para sairem galantes, usão de varias invenções, tingindo seus corpos com certo sumo de uma arvore com que ficam pretos, dando muitos riscos pelo corpo, braços, etc, a modo de imperiaes”.

"Todos andam nus assim homens como mulheres, e não têm gênero nenhum de vestido e por nenhum caso verecundant, antes parece que estão no estado de innocencia nesta parte, pela grande honestidade e modéstia que entre si guardão. [...]. Agora já andão alguns vestidos, assim homens como mulheres, mas estimãono tão pouco que o não trazem por honestidade, mas por ceremonia, e porque lho mandão trazer, como se vê bem, pois alguns saem de quando em quando com umas jornes que lhes dão pelo umbigo sem mais nada, e outros somente com uma carapu¬ça na cabeça, e o mais vestido deixão em casa: as mulheres fazem muito caso de fitas e pentes." (CARDIM, 2010, p. 4).

Percebe-se a admiração com que Cardim escrevia a respeito dos índios, falando da inocência deles de um modo totalmente diferente do modo como Caminha escrevia, trata a inocência como parte integrante da vida do índio, que por serem bons e modestos demais ainda eram tidos como inocentes, humildes devido ao modo como tratavam as pessoas.
No terceiro trecho em que se refere que alguns índios já andavam vestidos, seu modo de falar traz um tom de preservação dos costumes que eles já tinham, percebe que a própria influência dos brancos estava alterando, de alguma maneira, os costumes que os indígenas tinham.
Como foi possível perceber após a análise destes cinco autores da Literatura de Informação é que cada um, a seu modo, chegou a uma conclusão diferente a respeito das impressões tidas do Brasil, mais necessariamente, segundo minha análise, sobre os costumes dos índios, principalmente sobre a nudez deles.
Os que mais se “igualaram” em termos de ideias foram Pero Vaz de Caminha e André Thevet, que usaram um tom mais crítico e duro em relação ao modo como os índios se vestiam, pôde-se perceber que não aceitavam de maneira alguma que eles se portassem daquela maneira, não admitiam os seus costumes.
Enquanto que Hans Staden, Gabriel Soares de Sousa e Fernão Cardim, tiveram uma visão extremamente diferente. Voltaram-se mais para o lado da descrição, falando e tratando tudo naturalmente sem nenhuma intenção de desvalorizar os costumes dos indígenas. Falam com o intuito de fazer com que as demais pessoas conhecessem e admirassem, assim como eles, os modos de vida do “selvagem” que encontraram por aqui.
Por mais que todos tenham tido um olhar diferenciado em relação ao modo de vida dos indígenas encontrados aqui, é indispensável lembrar que todos os colonizadores que chegaram ao Brasil tinham a intenção de catequizar os índios e fazê-los submissos aos seus desejos e suas ordens, explorar, dominar e conquistar cada vez mais territórios, sempre com a justificativa da difusão do Cristianismo, estas atitudes e ações dos colonizadores afetaram, e afetam até hoje, o desenvolvimento das culturas indígenas.

Bibliografia Consultada
CAMINHA, Pero Vaz. Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel, 1500.
CARDIM, Fernão. Tratados de Terras e gentes do Brasil. Disponível em: http://www.consciencia.org/dhttp://www.consciencia.org/do-principio-e-origem-dos-indios-do-brasil-e-de-seus-costumes-adoracao-e-ceremonias-fernao-cardim. Acesso em: 25 de maio de 2010 às 10:48:36.
OLIVIERI, Antonio Carlos & VILLA, Marco Antonio. Cronistas do Descobrimento. 4ª Ed. São Paulo: Ática, 2009.
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587. Madri, 1851.
STADEN, Hans. Duas viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil. [Tradução Angel Bojadsen, introdução de Eduardo Bueno]. Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A exaltação do herói em “Feitos de Mem de Sá” comparado com “Os Lusíadas”

POR CÉLIA NIESCIORUK




Analisar uma obra clássica da literatura brasileira certamente não é tarefa fácil. Mais difícil ainda é analisar esta obra em comparação com outra obra clássica, buscando ao máximo a perfeição, tendo em vista que a linguagem é diferente e considerando que as obras são escritas em um espaço de tempo diferenciado também.
Assim não será tão fácil fazer a apreciação comparativa de “Feitos de Mem de Sá” e “Os Lusíadas”, clássicos do gênero épico publicados entre os anos de 1550 e 1580.
O gênero épico é provavelmente a mais antiga das manifestações literárias remonta a antiguidade Greco e latina sendo os seus expoentes máximos Homero e Virgilio. A palavra “épos” vem do grego e significa “versos” e, portanto o gênero épico nada mais é que uma narrativa em versos. É sobretudo um canto, um poema de exaltação.
Na estrutura desse gênero geralmente temos um narrador, o qual conta a história praticada, a sucessão de acontecimento, as personagens as quais giram em torno os fatos, o tempo e o local onde acontecem as ações.
O gênero épico apresenta três espécies: as epopéias, o poema épico e o poemeto. Aqui o que nos interessa é a epopéia, obra de largo fôlego, geralmente envolvendo a história de um povo ou de uma nação, ou ainda passagens históricas de importância universal.
A epopéia tem estilo elevado e que visa celebrar feitos grandiosos de heróis fora do comum reais ou lendários. Possui um fundo histórico, onde em sua estrutura exige-se a presença de uma ação, desempenhada por personagens num determinado tempo e espaço. Seus principais aspectos são: preposição, invocação, dedicatória, narração e a presença da mitologia Greco latina.
Esse gênero surge com o Renascimento, e a literatura atinge seu ápice, em Portugal, durante um período denominado de Classicismo, entre os anos de 1527 e 1580. É marcado pela busca do equilíbrio formal. Luís de Camões foi quem aperfeiçoou essas novas técnicas poéticas na língua portuguesa, e um exemplo disso é a obra “Os Lusíadas”, que traduz em versos toda a história do povo português e suas grandes conquistas, tomando como motivo central a descoberta do caminho marítimo as Índias. Para cantar essa história, Camões foi buscar no poema épico sua inspiração. A obra foi publicada em 1572, e conta em sua estrutura narrativa com 1.102 estrofes, 8.816 versos divididos em 10 cantos, utilizando estrofes de oitava rima. Camões utiliza a mesma estrutura narrativa que da Odisséia de Homero.
A epopéia escrita por Camões há tanto tempo, continua a surpreender e emocionar leitores que se arriscam a penetrar em suas páginas. A narrativa principal apresenta a viagem da armada de Vasco da Gama que navegaram em torno do cabo da boa esperança e abriram uma nova rota ate a Índia por mares nunca dantes navegados.

“As armas e os barões assinalados
que da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana
Em perigos e em guerras esforçados.”
(primeira estrofe do canto I)


Gama relata na narrativa feitos dos heróis portugueses anteriores a ele, como Don Nuno Álvares Pereira, o caso de amor trágico por Inês de Castro, e o episódio do Gigante Adamastor que se tornam os fatos mais importantes da narrativa.
Já aqui no Brasil, por volta de 1553, chega à colônia com a Companhia de Jesus, José de Anchieta. Considerado o primeiro intelectual a atuar no país, ele escreveu poemas líricos, dramas, além de ter sido o primeiro e maior catequizador dos índios. Basicamente as obras de José de Anchieta são de cunho religioso, compostas por cartas e sermões, porém, uma de suas obras “De Gentis Mendi de Saa”, ou, “Feitos de Mem de Sá”, tem características de um poema épico podendo ser comparado com “Os Lusíadas”.
Esta obra de Anchieta foi publicada por volta do ano de 1563, que retrata a luta dos portugueses, chefiados pelo governador-geral Mem de Sá, para expulsar os franceses da baía de Guanabara. Mem de Sá foi o governador que em pouco tempo conseguiu conter os índios e dominá-los, possibilitando com isso a presença do missionário catequizador. O padre Anchieta fez essa grande epopéia com o triunfo da colonização portuguesa, a que fará eco o grande poema épico de Camões, nove anos mais tarde.
Em ambas as obras pode-se encontrar a exaltação de um herói. Na obra “Os Lusíadas”, esse herói a princípio parece ser Vasco da Gama, por sua viagem por mares nunca dantes navegados. Porém no decorrer da história, pode-se perceber que na realidade, como o próprio título da obra indica o herói desta epopéia é coletivo, os Lusíadas, ou os portugueses.
Isso fica claro, quando nas estrofes iniciais do discurso no concílio dos deuses, surge à orientação do autor:


“ Eternos moradores do luzente
Estelífero pólo, e claro assento,
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos fados grandes certo intento
Que por ele se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos."
(Canto I, estrofe 24.)


Ao desenrolar de sua história, percebe-se em várias passagens a exaltação que Camões faz desse herói, celebrando os Portugueses enquanto nação, coletividade. Para isso, a obra é marcada por sucessivas e vitoriosas lutas contra mouros e castelhanos, e mostra como um país tão pequeno descobre novos mundos e impõe a sua lei no concerto das nações.

“Mas os Mouros que andavam pela praia,
Por lhe defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em cilada.
E, porque o caso leve se lhe faça.
Põem uns poucos diante por negaça.”


Assim sucessivamente, o autor Camões vai cantando durante toda a sua obra os feitos de seus heróis, os portugueses, exaltando suas conquistas, suas descobertas, sua coragem de desvendar o desconhecido, ultrapassar os limites traçados pela cultura antiga de modo a fazer aumentar esse lado heróico e exemplar da história dessa nação. Ao final do poema, surge um episódio denominado Ilha dos Amores, onde Vênus recompensa os heróis lusitanos através dos tempos, ofertando-lhes repouso nessa ilha, paraíso dedicado ao prazer, onde as ninfas os aguardam.


"Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegre se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não experimentá-lo."

Já a epopéia de Anchieta narra os feitos do governador Mem de Sá, que é exaltado como herói por José de Anchieta, devido às conquistas realizadas pelo próprio. O poema é narrado a partir da figura de Mem de Sá, as lutas contra os índios e os franceses, que foi levada a cabo pelo governador, que o apresentou como herói e salvador da pátria.
O fato de Mem de Sá ser exaltado por Anchieta como herói está presente desde o primeiro livro que compõe a obra, quando se faz uma apresentação geral da situação do Brasil antes da chegada do governador, mostrada de forma caótica:

“Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! Quanto bem trarás a seus povos
abandonados! Com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!”

No segundo livro, o autor vai destacar o herói na luta contra os índios. Ao vencer os indígenas, o autor exalta o processo de conversão e de abandono dos costumes antigos, por conta dos feitos do grande governador e herói:

“ assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
A sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
E a raiz primeira e causa de todos os males,
A obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
Para a gloria e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
Afastam as mãos os que há pouco no sangue do inimigo
Tripudiavam esmagando nos dentes membros humanos
Há pouco a febre do impuro lhes devorava as entranhas
Imersos no ladoçal, ai rebolavam o fétido corpo,
Preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna
Vinculada pelo laço do matrimonio sagrado
Que lhe guarda sem mancha o pudor prometido.”

Anchieta ainda destaca Mem de Sá por seus valores cristãos. O herói reconhece sua ferocidade e busca amenizar com a ação da compaixão para com o índio:


“o governador ouviu com bondade essas palavras
E respondeu: “se vos fiz guerra cruel de extermínio,
Devastando os campos e lançando em vossas moradas
O incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
A aliança e a paz que quereis e sentimos vossa desgraça
Porem deveis vós observar as leis que vos dito.” (...)

Além desses aspectos, muitos outros são citados na obra de Anchieta sobre as características desse herói.
Em face do que foi visto até agora, pode-se concluir que “Feitos de Mem de Sá” entrelaça-se com “Os Lusíadas”. Em Camões, assim como em Anchieta, a memória e a esperança estão em um mesmo plano, o da realidade na qual se passa a história. O assunto central de Anchieta é a chegada de Mem de Sá ao Brasil, que de certa forma vivia um situação caótica, onde o herói transformou uma nação, expulsando franceses e dominando os índios. Já em “Os Lusíadas” o herói é a nação, o povo que desvendou mares nunca antes navegados e mostrou ao mundo suas conquistas e descobertas.
“Feitos de Mem de Sá” comparado a “Os Lusíadas” é uma enorme desafio. Camões e Anchieta retratam heróis de carne e osso, bravos e infalíveis, ainda mais quando se trata de uma nação. São heróis com virtude e manhas, que enfrentaram aventuras e riscos por um objetivo.
Ambas as obras são epopéias clássicas, escritas há séculos atrás, por volta do ano de 1550. Na epopéia camoniana o herói é recompensado pela imortalidade; já em Anchieta, Mem de Sá, como é apresentado, não aparece para receber louvores terrenos por seus feitos heróicos, mas para ser um exemplo de servo da vontade divina na qualidade de chefe, afastando seus habitantes do estado rude e selvagem que os impedia de serem salvos.
Em ambas as obras os heróis, tanto coletivo como individualizado, surgem como homens corajosos, empreendedores, mas de dimensões humanas, sujeitos às fragilidades e limitações, de onde se evidencia uma notável ponderação.
Bom... Estas são algumas características dos heróis presentes nas obras de Camões e de Anchieta. Duas belíssimas e importantíssimas obras de nossa literatura, clássicos épicos que contêm uma raridade inexplicável e que ainda guardam muitos aspectos para estudos no sentido de explorar suas peculiaridades.

Referências:
ANCHIETA, José de. Feitos de Mem de Sá. São Paulo: Ministério da Educação e da Cultura, 1970.
BRANDÃO, Antonio J de Souza. A poesia épica: Os Lusíadas. Disponível em: http://www.jackbran.pro.br/literatura/critica_lusiadas.html acesso em 10/04/2010 as 16:30h
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Editora Scipione, 1960.
PINHO, Sebastião T. de. Comparações homéricas no poema De Gestis Mendi Saa. In: Humanitas- vol. L, Universidade de Coimbra, 1998.
POSSEBON, Fabrício. O épico De Gestis Mendi Saa. Dissertação (Doutorado em Letras), Universidade Federal da Paraíba, 2007.
PRADO, Edna. Camões épico: Os Lusíadas. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/3374035/literatura-aula04-camoes-epico-os-lusiadas. Acesso em: 23/04/2010 as 14:25h