Podemos definir o livro numa acepção mais ampla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação. Ou, num contexto mais moderno, segundo palavras do próprio Lucien Febvre (Martin, 1992:15): livro é o instrumento mais
poderoso de que pode dispor uma civilização para concentrar o pensamento disperso de seus representantes e conferir-lhe toda a eficácia, difundindo-o rapidamente no tecido social, com um mínimo de custos e de dificuldades. Sua função primordial é ''conferir [ao pensamento] um vigor centuplicado, uma coerência completamente nova e, por isso
mesmo, um poder incomparável de penetração e de irradiação".

(Arlindo Machado, no ensaio "Fim do livro?")

sábado, 4 de setembro de 2010

Misto de improviso e sorte marcaram a Independência

DA GAZETA DO POVO
04/09/2010

Apesar de a Independência ter sido declarada em 1822, demorou nove anos para que o Brasil deixasse efetivamente de pertencer aos domínios de Portugal: só em 1831, com a abdicação do imperador dom Pedro I, é que os brasileiros sentiram, na prática, o que significou o grito de independência ou morte. Antes de dom Pedro largar o poder, o país – mesmo em sua suposta liberdade – continuou sendo governado por um imperador que se dividia entre os interesses brasileiros e portugueses. Com a morte do pai dele, dom João VI, em 1826, por exemplo, a Cons­tituição lusitana foi aplicada por aqui também.
Dom Pedro quis manter um pé em cada canoa e isso contribuiu para desgastar a figura dele durante o primeiro reinado. Ele ainda estava de olho, ao mesmo tempo, nos futuros tronos de Brasil e Portugal. Tanto que aqui deixou seu filho e lá conseguiu tornar imperadora a filha mais velha, Maria da Glória, que ficou com o título de Maria II. “Dom Pedro rapidamente se converte de herói a vilão. Depois do grito da independência, ele é coroado em 1.º de dezembro. É o grande herói nacional celebrado no país inteiro. Mas sua índole autoritária e seu romance com a amante Marquesa de Santos ajudam a enfraquecer sua imagem”, afirma o jornalista Laurentino Gomes, que acaba de lançar o segundo livro sobre a His­tória do Brasil. O novo título é 1822, em que o autor analisa um período de 13 anos, do retorno de dom João VI a Portugal, em 1821, até a morte de dom Pedro I, em 1834.
Seria mesmo dom Pedro capaz de morrer pelo Brasil, como prometeu no dia 7 de setembro? Laurentino acredita que sim, “porque ele era brasileiro de coração”. Devido às circunstâncias políticas da época, contudo, ele acaba sendo obrigado a cuidar também dos interesses de Portugal. “É uma opção difícil que o deixa fragilizado diante dos brasileiros. Ele vai a Portugal em 7 de abril de 1831 para enfrentar o irmão mais novo, dom Miguel, que havia dado um golpe para chegar ao poder. Ele recupera o trono e o entrega a sua filha”, diz.
“O livro mostra que Brasil era este que ficava para trás com o retorno de dom João VI a Portugal. Eu teria razões suficientes para acreditar, ao ver o país em 1822, que ele seria inviável na sua forma atual.”
O livro 1822, de Laurentino Gomes, traz detalhes da História pouco conhecidos pelos brasileiros. Um deles é o fato de dom Pedro I ter tido 20 filhos em relações extraconjugais e ter reconhecido a paternidade de todos eles. “Era um pai amoroso que trocava cartas com todos. Só que na monarquia as pessoas, antes de serem de carne e osso, eram instituições do Estado. O que quero dizer é que o fato de ele deixar no Brasil, com 5 anos, o filho dom Pedro II foi feito se pensando que ali ficava o futuro imperador do Brasil”, diz Laurentino Gomes.
Já a mulher de dom Pedro, Leopoldina de Bragança e Bourbon, envelheceu 30 anos somente os nove anos em que ficou no Brasil. Além de ter se enganado ao pensar que chegaria no paraíso (aqui sofreu com o calor e os mosquitos), ela cai em depressão ao saber que o marido tinha diversas amantes. “Em uma viagem para a Bahia, o imperador leva a amante [Marquesa de Santos] no mesmo barco e Leopoldina tem de suportar a situação. Depois a marquesa vira dama da imperatriz. Imagine Leopoldina tendo de aguentar a presença desta mulher até na hora de ir dormir”, comenta.
A partir da saída de dom Pedro I, o Brasil começa a sua independência com a regência provisória, de 1831 a 1840. Esse período é marcado por rebeliões sangrentas, como a Revolução Farroupilha, a Cabanagem e a Sabinada. Em 1840, dom Pedro II assume a coroa pelo golpe da maioridade (tinha 14 anos na época) e foi o primeiro imperador nascido no Brasil a comandar o país. “Ele é um homem muito diferente do pai. Não era intempestivo, aventureiro e boêmio. Pelo contrário, era estudioso e muito preocupado com a própria imagem”, explica. O resto da história deste jovem imperador fica em suspense, por enquanto, porque Laurentino pretende lançar, daqui a três anos, outro livro com o título 1889, que vai falar de dom Pedro II e da Proclamação da República no Brasil.
A Independência
O quadro de Pedro Américo, pintado por encomenda do governo imperial para retratar a Independência, é de fato uma construção mitológica. O Brasil estava às vésperas da Pro­clamação da República e a monarquia estava fragilizada, por isso dom Pedro I precisava aparecer limpo e imponente na pintura para ter uma boa imagem diante da opinião pública. Na verdade, a cena não aconteceu. No lugar do cavalo, ele estava montado em uma mula, que era o jeito correto de fazer uma viagem na época; vestia roupas simples parecidas com a dos tropeiros e estava com dor de barriga porque tinha ingerido alguma comida estragada em Santos. “Essa é a cena verdadeira, é mais brasileira e próxima do que de fato aconteceu. Não por isso, menos importante”, cita Lau­rentino.
A notícia ocorrida em território paulista foi espalhada lentamente pelo vasto território brasileiro – em Santa Catarina, por exemplo, demorou dois meses para chegar. Apesar de ter ocorrido em 7 de setembro, o dia da Indepen­dência é comemorado, na Bahia, na data em que houve a expulsão das tropas portuguesas do país, em 2 de julho de 1823.
Ideia imatura
O primeiro caso que influencia os rumos para a Independência é o retorno de dom João a Portugal. Ele vai embora e deixa o país falido, pois havia esvaziado os cofres do Banco do Brasil. Não havia mais exército nem navios. Existia, sim, uma grande chance de o Brasil se dividir em três ou quatro países independentes, como ocorreu na América Espanhola. Mas aconteceu justamente o contrário: com a Indepen­dência, mesmo que não planejada, o Brasil ficou unido. “Digo no livro que a Independência foi uma espécie de combinação da sorte, improvisação do acaso com alguma sabedoria”, diz Laurentino.
Há muita improvisação. Dom Pedro I vai a Minas Gerais em março de 1822 para apaziguar a província que ameaçava se separar do Brasil. Depois consegue o mesmo feito em São Paulo e Rio de Janeiro. “Digo que ele assegura a fidelidade [com a promessa de Independência] com o que eu chamo de coração do Brasil”, explica.
A sorte foi grande porque o Brasil tinha um destacamento militar português que poderia ter se rebelado, mas aceitou o grito de liberdade. Dom Pedro, porém, tinha apenas 23 anos, era inexperiente e ousado demais, por isso contou com a sabedoria da esposa, Leopoldina de Bragança e Bour­bon, e com o fiel José Bonifácio de An­­drada e Silva. O projeto de Boni­fácio consistia em deixar o poder centralizado na figura de um rei, após a Independência, já que o contrário poderia gerar uma guerra civil com resultados muito mais violentos. E mesmo assim houve combates, como a Confe­­deração do Equador, em 1824, para tornar Pernambuco independente. A insatisfação foi resultado também do fato de o imperador dissolver a Constituinte de 1822 e criar outra em 1824 a seu bel-prazer.
O Brasil nunca teve um projeto concreto de Independência, pois a maioria das forças brasileiras desejava continuar fazendo parte do Reino Unido (Brasil, Portugal e Algarves), porque, do ponto de vista econômico, era mais rentável ter abertura com o mercado europeu. Para Laurentino, esta união, mesmo que entre países independentes, existe simbolicamente até hoje por meio da cultura, da música e da novela. “Todos os anos atravessam o oceano 220 mil portugueses e brasileiros em viagem de turismo ou negócios. O Reino Unido, de certa forma, deu certo.”

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