Podemos definir o livro numa acepção mais ampla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação. Ou, num contexto mais moderno, segundo palavras do próprio Lucien Febvre (Martin, 1992:15): livro é o instrumento mais
poderoso de que pode dispor uma civilização para concentrar o pensamento disperso de seus representantes e conferir-lhe toda a eficácia, difundindo-o rapidamente no tecido social, com um mínimo de custos e de dificuldades. Sua função primordial é ''conferir [ao pensamento] um vigor centuplicado, uma coerência completamente nova e, por isso
mesmo, um poder incomparável de penetração e de irradiação".

(Arlindo Machado, no ensaio "Fim do livro?")

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Poesia e Música: conflitos sociais brasileiros marcados na arte barroca

POR PAOLA PEREIRA

O Barroco no Brasil se deu por volta do século XVII e a metade do século XVIII, período que corresponde à consolidação de uma aristocracia colonial brasileira. O país passava por uma série de mudanças sociais, econômicas e culturais, que nesse período tornaram-se temas centrais das produções artísticas.
A poesia barroca atravessou três fases no Brasil, e sem sombra de dúvida, a grande expressão foi Gregório de Matos e Guerra, poeta com grande veia satírica, e igualmente penetrante na religião e no amor, muitas vezes de crua carga erótica. Já no que se refere à música, temos José Mauricio Nunes Garcia, padre tímido e ingênuo que desenvolvia um estilo direto e de melodismo simples e sincero.
Gregório de Matos, mais conhecido como ‘O Boca do Inferno’ por suas criticas mordazes aos costumes da época, foi o primeiro nativo a trazer um hausto de expressividade vital a linguagem poética no Brasil, em contraste com os demais versejadores da época colonial. A critica descortina o fato de o autor ter dotado sua obra de violento sopro de vida, quando a poesia barroca, em geral era artificiosa e fria. Vale mencionar que não podemos vê-lo apenas como um poeta satírico, mas também como poeta religioso e mesmo como poeta lírico se tornou um dos mais representativos do barroco brasileiro.
Suas poesias satíricas nos revelam seu espírito critico; a critica ao brasileiro explorado pelo colonizador, a critica ao próprio colonizador português, ao clero e aos costumes da sociedade baiana:

A cada canto um grande conselheiro,
Que nos quer governar cabana e vinha:
Não sabem governar sua cozinha,
E podem governar o mundo inteiro!

Em cada porta um bem freqüente olheiro
Da vida do vizinho e da vizinha,
Pesquisa, escuta, espreita e esquadrinha
Para o levar a praça e ao terreiro

Muitos mulatos desavergonhados,
Trazidos pelos pés aos homens nobres;
Posta nas palmas toda a picardia

Estupendas usuras nos mercados:
Todos os que não furtam, muito pobres:
Eis aqui a cidade de Bahia

Portanto, como é possível perceber pelo poema, Matos satiriza os fofoqueiros, ladrões e agiotas incompetentes.
Além da poesia literária, temos outra face de expressão cultural: a música, que também está repleta de marcas sociais.Sua trajetória, ao contrario das outras artes no barroco brasileiro, é das menos conhecidas e das que nos deixou menos relíquias.
Os teóricos barroquistas citam um famoso soneto de Mariano (também barroco):

E DEL POETA IL FIN LA MERAVIGLIA
CHI NON AS FAR STUPIR, VADA ALTA STRIGLIA.

A música tem que ser maravilhosa, grandiosa, produzir espanto no ouvinte, atacar nossos sentidos e ter muitos bordados e volutas. Ela nos mostra a vitória do individuo sobre o coro. Esse gênero instituiu a soberania do cantor: ele é o centro e é em torno dele que se monta todo o espetáculo. O tempo do interprete era o do prazer ou o do desprazer mundano; o êxtase religioso era uma forma de manifestar a sensibilidade ao extremo.
rande parte da prática e do ensino era conduzida pelos religiosos, o que mais se produziu foi no gênero sacro, no qual o religioso potencializava o real e as suas perspectivas em razão de seus sonhos, desejos e crenças mais profundos, ditos através dessa linguagem sensível e simbólica em missas, motetos, antífonas, ladainhas e salmos, seja a capella, seja para solista com coro e orquestra.Os louvores, em sua maioria eram marcados pela percussão, e ampliados pelo uníssono do coro e sublinhados pelos metais.
Padre José Mauricio Nunes Garcia é considerado um dos maiores compositores das Américas do seu tempo (1767-1830). Sua inapetência para a música profana foi uma de suas pedras de tropeço em uma sociedade marcada de desonestidade, corrupção, carregada de ambições e sexualidade desenfreada.
A maior parte de suas composições estão voltadas para a música sacra, como TOTA PULCHRA ES MARIA (1783); ECCE SACERDOS (1798); BENDITO E LOUVADO SEJA (1814-1815), entre tantas outras. Mas também são de sua autoria e merecedoras de destaque as músicas dramáticas, orquestral e as modinhas, dentre elas No Momento da Partida e Beijo A Mão Que Me Condena:

Beijo a Mão Que Me Condena ( modinha )
Padre José Mauricio Nunes Garcia

Beijo a mão que me condena
a ser sempre desgraçado
obedeço ao meu destino
respeito o poder do fado

Que eu ame, tanto sem ser amado
Sou infeliz, sou desgraçado.

Contrapondo-se ao Padre Nunes Garcia temos Caetano Melo de Jesus, ao qual é atribuída, por muitas vezes a autoria de Cantata Acadêmica, obra entendida por muitos como ótimo exemplo da retórica típica da época. Assim como Gregório de Matos, Melo segue uma vertente de produção musical voltada para o profano:

(...)

“E bem que quis a mísera fortuna,
Que vos fosse molesta e que importuna
A hospedagem, Senhor, desta Bahia.

Sabem os céus e testemunha sejam,
Que dela os naturais só vos desejam
Faustos anos de vida e saúde,
De prospera alegria, pela afável virtude

De vossa generosa urbanidade,
Com que a todos honrais, desta cidade!

(...)

Oh! Quem me dera a voz, que dera a lira
De Anfião e de Orfeu, que arrebatava os montes
E fundava cidades, pois com elas erigira

Um templo que servisse por memória
E eterno momento á vossa glória!

(...)

Oh! Se também tivera o canto grave
Da filomela doce e cisne suave,
Vosso louvor, sem pausa, cantaria,
Com cláusula melhor, mais harmonia.”

Os poetas e os músicos evadiram-se pelo culto exagerado da forma, sobrecarregando a poesia de figuras como a metáfora, a antítese, a hipérbole e a alegoria, voltando-se também para uma ornamentação musical mais elaborada e a combinação de instrumentações e vozes mais variadas em conjunto a oratórios e cantatas.
Tanto a poesia quanto a música barroca são marcadas por uma linguagem complicada, excessivamente trabalhada através de expressões eruditas, de uma sintaxe extremamente rebuscada, com o uso freqüente de idéias apresentadas em ordem inversa, repetições e paralelismos. É fato que ambos apresentam uma característica que é muito forte: o pessimismo, onde a vida terrena é vista como triste, cheia de sofrimentos, enquanto a vida celestial é luminosa e tranqüila.
Hoje muitas pesquisas continuam revelando obras musicais que foram dadas como perdidas, enriquecendo o nosso conhecimento sobre um campo que pouco conhecemos, onde existe muito para resgatar e entender. Mas com esse breve levantamento já conseguimos perceber que a música atuava como ‘processo’ de significado social, assim como a literatura e as demais artes, abordando os conflitos existenciais: fé x razão, teocentrismo x antropocentrismo, corrupções, desonestidades, que eram questões muito discutidas no século XVIII, e ainda presentes em pleno século XXI.

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