Podemos definir o livro numa acepção mais ampla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação. Ou, num contexto mais moderno, segundo palavras do próprio Lucien Febvre (Martin, 1992:15): livro é o instrumento mais
poderoso de que pode dispor uma civilização para concentrar o pensamento disperso de seus representantes e conferir-lhe toda a eficácia, difundindo-o rapidamente no tecido social, com um mínimo de custos e de dificuldades. Sua função primordial é ''conferir [ao pensamento] um vigor centuplicado, uma coerência completamente nova e, por isso
mesmo, um poder incomparável de penetração e de irradiação".

(Arlindo Machado, no ensaio "Fim do livro?")

quarta-feira, 14 de julho de 2010

GRANDE POR NATUREZA: O BRASIL VISTO PELOS CRONISTAS

POR KELLIS COELHO FARIAS

O Brasil é uma terra de riquezas naturais que recebe a admiração de muitos povos cujos territórios não possuem tamanha variedade, beleza e extensão. O clima agradável e os lugares maravilhosos encontrados neste país, contribuem para o incentivo turístico dos próprios brasileiros, pouco conhecedores da importância que a natureza tem na história do Brasil.
É preciso ir além do simples conhecimento de que o nome Brasil vem de uma árvore chamada pau-brasil, com a qual os índios produziam uma tinta avermelhada.
As referências aos animais, às aves, muitas águas e árvores fornecem uma amostra da grandiosidade e beleza natural encontrada e registrada pelos cronistas, afinal, o impacto que a natureza brasileira causa nas pessoas, não é algo recente. A beleza dessas terras impressiona desde o início de sua história.
Documentos que registram o início da história do Brasil revelam semelhanças na descrição dessa riqueza natural, elogiada por sua variedade, qualidade e beleza, oportunizando uma reflexão sobre o tratamento recebido pela natureza atualmente.
O roteiro que norteará o levantamento das informações é formado pelas seguintes leituras:
• Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei D. Manuel;
• Duas Viagens ao Brasil: primeiros registros sobre o Brasil, de Hans Staden;
• História da Província de Santa Cruz, de Pêro de Magalhães Gândavo;
• Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry e
• Livro Cronistas do Descobrimento contendo, entre outros, trechos sobre As Singularidades da França Antártica, de André Thevet.
Por tratar-se de um grande número de informações, abordaremos apenas os aspectos relativos ao plantio da mandioca pelos indígenas, as grandes árvores encontradas, os frutos deliciosos e abundância de águas.

Sobre o plantio de raízes

Todas as obras citadas têm em comum a referência ao plantio de raízes (mandioca), alguns descrevendo com maiores detalhes a forma como se plantava e como era produzida a farinha de mandioca. Essas informações podem ser levantadas com a observação de alguns trechos das referidas obras.
Iniciando com a Carta de Pero Vaz de Caminha observamos uma referência ao plantio de raízes para a alimentação:

[...] Nem há aqui boi, nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha, nem outra nenhuma alimária que seja acostumada ao viver dos homens, nem comem senão desse inhame – que aqui há muito [...] (CAMINHA, 1500).

O que fora constatado por Caminha com relação à existência farta dessa raiz, é confirmado por Hans Staden quando, refere-se à maneira como os indígenas preparavam as raízes, conforme o texto a seguir:

[...] enterram as mudas das plantas de raízes, que usam como pão, entre as cepas das árvores. Essa planta chama-se mandioca. É um arbusto que cresce até uma braça de altura e cria três raízes. Quando querem preparar as raízes, arrancam o arbusto, retiram as raízes e os galhos e enterram novamente pedaços do tronco. Estes, então, geram raízes e crescem em seis meses, o necessário para que se possa consumi-los. (STADEN, 2008, p.142).

Conforme a citação acima, verificamos que na obra de Hans Staden a descrição feita pelo autor não está restrita apenas ao modo de alimentação, mas inclui a informação da maneira pela qual os habitantes da terra a cultivavam.
Na obra de Pêro de Magalhães Gândavo encontramos também referência ao plantio e cultivo da mandioca, concordando com os trechos já citados. Abaixo segue um exemplo:

Primeiramente tratarei da planta e raiz de que os moradores fazem seus mantimentos que la comem em logar de pão. A raiz se chama mandioca, e a planta de que se gera he de altura de hum homem pouco mais ou menos. Esta planta nam he muito grossa, e tem muitos nós: quando a querem plantar em alguma roça cortão-na e fazem-na em pedacos, os quaes metem debaixo da terra, depois de cultivada, como estacas, e dahi tornaõ arrebentar outras plantas de novo: e cada estaca destas cria tres ou quatro raízes [...]. (GÂNDAVO,1980,cap. V).

Observamos no trecho citado acima a semelhança na narrativa da descrição do plantio da mandioca entre Hans Staden e Gândavo.
Informação semelhante é encontrada na obra de André Thevet, a qual faz menção da raiz muito comum e bastante consumida pelos moradores da terra, conforme o trecho a seguir:

[...] por terem eles grande abundância dessa raiz, quase não comem outra coisa, ela é tão comum entre eles quanto o pão é para nós.
Dessa raiz encontram-se duas espécies do mesmo tamanho. A primeira, depois de cozida, fica amarela como o marmelo; a outra, fica esbranquiçada. E essas duas espécies têm folha semelhante ao maná e nunca dão sementes. Por isso, os selvagens plantam de novo a mesma raiz cortada em rodelas (...) que se multiplica em abundância. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p. 61).

egundo a citação mencionada anteriormente, confirma-se que o cultivo e o consumo da mandioca era uma prática comum dos indígenas. Esse fato também é relatado por Jean de Léry, de acordo com um trecho de sua obra Viagem à terra do Brasil, encontrada no livro Cronistas do Descobrimento:

No referente aos campos e às terras, cada pai de família terá também algumas jeiras à parte, que ele escolhe onde quer, segundo sua comodidade, para fazer roça e plantar suas raízes [...] (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p.70).

Com a contribuição dessa citação, fica evidente pelo relato unânime dos cronistas, que a principal fonte de alimentação dos índios vinha do plantio da mandioca, comparado ao consumo habitual de pão daqueles que chegaram ao Brasil. Alguns relatando de forma mais detalhada, outros mais resumidamente, no entanto, todos abordam a questão do plantio dessas raízes tão comuns no país.

Sobre as árvores

As árvores chamaram a atenção dos autores pelo seu porte e utilidade.
Na Carta de Pero Vaz de Caminha, observamos que as árvores encontradas foram citadas pelo seu grande porte, conforme o trecho abaixo:

[...] houvemos vista de terra, a saber: primeiramente, de um grande monte mui alto e redondo; de outras serras mais baixas, ao sul dele; e de terra chã (plana), com grandes arvoredos [...](CAMINHA, 1500).

Também de Caminha, a citação abaixo concorda com a anterior, informando sobre os grandes arvoredos que aqui se destacam pela vasta quantidade:

Alguns diziam que viram rolas, mas eu não as vi; mas como os arvoredos são muitíssimos, grandes e de infindas maneiras, não duvido que por esse sertão haja muitas aves. (CAMINHA, 1500).

Com relação às árvores, além de Caminha, acima mencionado, outro autor cita em sua obra esse aspecto da natureza encontrada. É o caso de Hans Staden que fez seu registro da seguinte forma ao valorizar o aspecto visual:

A América é uma terra extensa. (...) Tem um aspecto aprazível. As árvores estão sempre verdes. (STADEN, 2008, p. 133).

Ainda na obra de Staden, ao se referir às árvores, além da cor, o autor descreve uma determinada espécie utilizada para o transporte dos índios. O trecho abaixo esclarece tal utilidade:

Existe lá um tipo de árvore a que chamam de Igá-ibira. As cascas dessa árvore desprendem-se de cima até embaixo num único pedaço, e, para tanto, eles erigem uma proteção especial em torno da árvore, de forma a que se desprenda inteira. Em seguida pegam a casca e levam-na da montanha até o mar. Aquecem-na com fogo e curvam-na para cima na frente e atrás, mas antes disso amarram no centro pedaços de madeira no sentido transversal, para que não deforme. Assim fazem canoas em que até trinta deles podem ir à guerra. (STADEN, 2008, p.156-157).

As árvores que chamaram a atenção de Hans Staden pela beleza e utilidade, são descritas sob outro olhar na obra de Pêro de Magalhães Gândavo. Primeiramente, registrando a manifestação da natureza devido à existência de muitas árvores:

[...] e quando amanhece as mais das vezes està o Ceo todo coberto de nuvens, e assi as mais das manhãs chove nestas partes, e fica a terra toda coberta de nevoa por respeito de ter muitos arvoredos que chamão a si todos estes humores. (GÂNDAVO, 1980, cap. II).

Além da grande quantidade causadora de névoas, uma função medicinal é citada pelo autor. Esse é outro aspecto abordado, conforme o trecho a seguir:

Hum certo genero de arvores ha tambem pelo mato dentro na Capitania de Pernambuco a que chamam Copahibas de que se tira balsamo mui salutifero e proveitoso em extremo, para enfermidades de muitas maneiras [...]. (GÂNDAVO, 1980, cap.V).

Gândavo citou, além dessa primeira espécie usada para fins medicinais, uma outra, também utilizada na fabricação de um bálsamo. A evidência disso é o seguinte trecho:

Outras arvores differentes destas ha na Capitania dos llhéos, e na do Spirito Santo a que chamão Caborahibas, de que tambem se tira outro balsamo: o qual sae da casca da mesma arvore, e cheira suavissimamente. Tambem aproveita para as mesmas enfermidades [...]. (GÂNDAVO, 1980, cap. V).

Após a descrição de Pero de Magalhães Gândavo em suas observações sobre o uso medicinal da natureza, citamos o registro de André Thevet, descrevendo a conhecida atualmente como bananeira:

E como estamos falando de árvores, descreverei mais uma, não para ampliar este relato, mas sim movido pela grande virtude e incrível singularidade das coisas, pois nada de semelhante se encontra na Europa, na Ásia ou na África. Trata-se de uma árvore que os selvagens chamam de pacuer, porventura a mais admirável que se possa encontrar. Em primeiro lugar, do chão à rama, não tem ela mais de uma braça de altura, aproximadamente, e seu tronco tem uma grossura tal que um homem pode cingi-lo com as duas mãos. Isso, entenda-se, depois de crescida. E seu caule é tão macio que pode ser cortado facilmente com uma faca. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p. 62).

De acordo com a citação acima, sobre a impressão de Thevet, a natureza brasileira causa admiração por suas incríveis características. As árvores grandiosas e tão admiradas estão registradas nessas obras de várias formas.
Um exemplo importante sobre descrição da natureza é a que trata da árvore que dá nome ao país. A obra de Jean de Léry descreve a árvore do pau-brasil, conforme o exemplo abaixo:

Ao falar das arvores deste paiz devo começar pela mais conhecida entre nós, esse pau-brail de que a terra, por influencia nossa, tomou o nome e é tão apreciado graças á tinta que delle se extrahe. Os selvagens o chamam arabutan. Notamos que é arvore que engalha como o carvalho das nossas florestas, havendo algumas tão grossas que tres homens não lhes abraçariam o tronco. (LERY,1880, cap XIII).

Com a citação acima, juntamente com a demais sobre a natureza do Brasil representada pelas árvores, é interessante notar a riqueza de informações registradas, das mais diversas formas e ênfases, evidenciando a grande variedade de árvores encontradas pelos cronistas.

Sobre os frutos

a qualidade dos frutos encontrados nas terras do Brasil também foi registrada pelos cronistas, juntamente com uma informação que apresenta a relação tempo-natureza.
Pero Vaz de Caminha fez uma referência à qualidade dos palmitos encontrados, conforme o trecho a seguir:

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas, não muito altas, em que há mui bons palmitos. Colhemos e comemos muitos deles. (CAMINHA, 1500).

Sob um olhar diferente em relação ao de Caminha, as frutas são mencionadas por Hans Staden como uma referência de tempo para os índios. Maiores detalhes podem ser observados com a citação abaixo:

Quando querem empreender uma expedição guerreira no território do inimigo, os chefes reúnem-se e discutem como isto deve ser feito. Informam os homens em todas as cabanas para que se armem e, nessa ocasião, mencionam uma espécie de fruta de uma árvore; partem quando a fruta amadurece, pois não conhecem nem os anos nem os dias. (STADEN, 2008, p. 158).

Conforme o aspecto abordado por Staden na citação acima, além do uso para a alimentação, as frutas tinham o importante papel de marcar o tempo para os indígenas, possibilitando assim a organização de seus planos de guerra.
Já na obra de Pero de Magalhães Gândavo, encontramos uma informação sobre a existência de pessoas alimentadas durante dias apenas por frutas. O trecho a seguir mostra:

Outras muitas fruitas ha nesta Provincia de diversas qualidades comuns a todos, e são tantas que já se acharão pela terra dentro algumas pessoas as quaes se sustentavão com ellas muitos dias sem outro mantimento algum. Estas que aqui escrevo, são as que os portuguezes têm entre si em mais estima, e as melhores da terra. (GÂNDAVO, 1980, cap, V).

Além da fartura vista por Gândavo, garantindo inclusive a sobrevivência, as frutas impressionaram outro autor, André Thevet, que registra a sua opinião sobre a excelente qualidade dos frutos encontrados, conforme o seguinte trecho:

Quanto ao território de toda a América, é muito fértil em árvores que dão frutos excelentes [...]. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p. 60).

Esses frutos excelentes citados por Thevet recebem elogios também na obra de Léry, conforme o seguinte trecho encontrado:

Vendo-nos mais refeitos, mandaram incontinenti servir, à sua moda, ótimas carnes, como veação, aves, peixes e frutos deliciosos, que nunca lhes faltam. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p.78).

Deliciosos frutos citados acima, que impressionaram também por sua variedade. Todos os autores registraram as características que tornavam esses frutos tão especiais e pelos quais eles tinham grande estima. Frutos que demonstram todo o potencial da natureza existente.

Sobre as águas

As águas existentes no Brasil chamaram a atenção dos cronistas pela sua grande quantidade. A beleza dos rios também foi registrada por esses autores.
Na Carta de Pero Vaz de Caminha as águas foram mencionadas pela quantidade de água, conforme o trecho a seguir:

Passaram um rio que corre por aí, de água doce e de muita água, que lhes dava pela braga, e muitos outros com ele. (CAMINHA, 1500).

Além da informação acima sobre a existência de muita água no Brasil, a Carta de Caminha apresenta-nos mais outro:

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. (CAMINHA,1500).

As águas do Brasil citadas na Carta de Pero Vaz de Caminha pela abundância e qualidade, encontraram lugar também na obra de Hans Staden por sua beleza e quantidade. Pode-se notar isso, com o trecho a seguir:

Entre as montanhas há numerosos e belos cursos de água, onde há caça em abundância. (STADEN, 2008, p.134).

Com essa citação, é possível verificar que as águas faziam parte de vários outros aspectos que marcavam a natureza do país, como por exemplo, a farta existência de caça.
Pero de Magalhães Gândavo refere-se às águas como infinitas, registrando a existência de rios existentes, conforme a citação a seguir:

As fontes que ha na terra sam infinitas, cujas agoas fazem crescer a muitos e mui grandes rios que por esta costa, assi da banda do Norte, como do Oriente, entram no mar Oceano. (GÂNDAVO, 1980, cap. II).

Além do registro sobre os rios por Gândavo, as águas aparecem na narrativa de André Thevet, apontando para a sua extensão. O trecho abaixo é um exemplo disso:

São essas terras situadas realmente entre os trópicos, indo além do Trópico de Capricórnio, confinando do lado ocidental com Temistitã e as Molucas; ao sul, com o estreito de Magalhães, e dos dois lados com o Mar Oceano e o Pacífico. É verdade que perto de Daren e Furna a terra é muito estreita, pois o mar a adentra muito dos dois lados. (OLIVIERI, A. C.; VILLA, M. A., 2008, p.60).

O trecho anteriormente citado demonstra a noção de extensão percebida por Thevet.
Já na obra de Léry, destacamos seu registro quanto à formosura dos rios, segundo o trecho a seguir:

Na terra firme que rodeia este braço de mar existem, ao fundo, mais dois formosos rios d'agua doce, affluentes d'aquelle, nos quaes naveguei com outros patricios por uma vinte leguas interior a dentro, parando nas muitas aldeias de selvagens que alli existem dum lado e de outro. (LERY, 1880, cap. VII).

Pela citação acima, notamos o registro da beleza dos rios existentes feita por Léry, concordando com os demais cronistas ao relatarem sobre a formosura dos rios, águas doces e muita água encontrada.
Ao registrarem suas impressões, mesmo que sob olhares diferentes, os cronistas apontaram em suas obras a força que possui a natureza brasileira: na variedade das árvores, dos frutos, a abundância da águas, o plantio e sustento dos índios etc. Muitas outras informações são levantadas pelos cronistas e com ricos detalhes, abrangendo também a caça, os animais e o modo de vida dos povos que habitavam as terras do Brasil.
Todas essas considerações a respeito das grandezas naturais têm a finalidade de evidenciar a força da presença diversificada e extravagante em cores e espécies, caracterizando o país. E tudo isso já acontece há muito tempo, entretanto, as pessoas têm deixado de reconhecer essa riqueza natural.
A natureza que no passado, impressionou homens desbravadores, atualmente sofre os maus tratos de um povo que não cuida e nem valoriza algo que desde o princípio de sua história tem caracterizado essa nação: a natureza exuberante.

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