Podemos definir o livro numa acepção mais ampla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação. Ou, num contexto mais moderno, segundo palavras do próprio Lucien Febvre (Martin, 1992:15): livro é o instrumento mais
poderoso de que pode dispor uma civilização para concentrar o pensamento disperso de seus representantes e conferir-lhe toda a eficácia, difundindo-o rapidamente no tecido social, com um mínimo de custos e de dificuldades. Sua função primordial é ''conferir [ao pensamento] um vigor centuplicado, uma coerência completamente nova e, por isso
mesmo, um poder incomparável de penetração e de irradiação".

(Arlindo Machado, no ensaio "Fim do livro?")

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A exaltação do herói em “Feitos de Mem de Sá” comparado com “Os Lusíadas”

POR CÉLIA NIESCIORUK




Analisar uma obra clássica da literatura brasileira certamente não é tarefa fácil. Mais difícil ainda é analisar esta obra em comparação com outra obra clássica, buscando ao máximo a perfeição, tendo em vista que a linguagem é diferente e considerando que as obras são escritas em um espaço de tempo diferenciado também.
Assim não será tão fácil fazer a apreciação comparativa de “Feitos de Mem de Sá” e “Os Lusíadas”, clássicos do gênero épico publicados entre os anos de 1550 e 1580.
O gênero épico é provavelmente a mais antiga das manifestações literárias remonta a antiguidade Greco e latina sendo os seus expoentes máximos Homero e Virgilio. A palavra “épos” vem do grego e significa “versos” e, portanto o gênero épico nada mais é que uma narrativa em versos. É sobretudo um canto, um poema de exaltação.
Na estrutura desse gênero geralmente temos um narrador, o qual conta a história praticada, a sucessão de acontecimento, as personagens as quais giram em torno os fatos, o tempo e o local onde acontecem as ações.
O gênero épico apresenta três espécies: as epopéias, o poema épico e o poemeto. Aqui o que nos interessa é a epopéia, obra de largo fôlego, geralmente envolvendo a história de um povo ou de uma nação, ou ainda passagens históricas de importância universal.
A epopéia tem estilo elevado e que visa celebrar feitos grandiosos de heróis fora do comum reais ou lendários. Possui um fundo histórico, onde em sua estrutura exige-se a presença de uma ação, desempenhada por personagens num determinado tempo e espaço. Seus principais aspectos são: preposição, invocação, dedicatória, narração e a presença da mitologia Greco latina.
Esse gênero surge com o Renascimento, e a literatura atinge seu ápice, em Portugal, durante um período denominado de Classicismo, entre os anos de 1527 e 1580. É marcado pela busca do equilíbrio formal. Luís de Camões foi quem aperfeiçoou essas novas técnicas poéticas na língua portuguesa, e um exemplo disso é a obra “Os Lusíadas”, que traduz em versos toda a história do povo português e suas grandes conquistas, tomando como motivo central a descoberta do caminho marítimo as Índias. Para cantar essa história, Camões foi buscar no poema épico sua inspiração. A obra foi publicada em 1572, e conta em sua estrutura narrativa com 1.102 estrofes, 8.816 versos divididos em 10 cantos, utilizando estrofes de oitava rima. Camões utiliza a mesma estrutura narrativa que da Odisséia de Homero.
A epopéia escrita por Camões há tanto tempo, continua a surpreender e emocionar leitores que se arriscam a penetrar em suas páginas. A narrativa principal apresenta a viagem da armada de Vasco da Gama que navegaram em torno do cabo da boa esperança e abriram uma nova rota ate a Índia por mares nunca dantes navegados.

“As armas e os barões assinalados
que da ocidental praia lusitana,
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana
Em perigos e em guerras esforçados.”
(primeira estrofe do canto I)


Gama relata na narrativa feitos dos heróis portugueses anteriores a ele, como Don Nuno Álvares Pereira, o caso de amor trágico por Inês de Castro, e o episódio do Gigante Adamastor que se tornam os fatos mais importantes da narrativa.
Já aqui no Brasil, por volta de 1553, chega à colônia com a Companhia de Jesus, José de Anchieta. Considerado o primeiro intelectual a atuar no país, ele escreveu poemas líricos, dramas, além de ter sido o primeiro e maior catequizador dos índios. Basicamente as obras de José de Anchieta são de cunho religioso, compostas por cartas e sermões, porém, uma de suas obras “De Gentis Mendi de Saa”, ou, “Feitos de Mem de Sá”, tem características de um poema épico podendo ser comparado com “Os Lusíadas”.
Esta obra de Anchieta foi publicada por volta do ano de 1563, que retrata a luta dos portugueses, chefiados pelo governador-geral Mem de Sá, para expulsar os franceses da baía de Guanabara. Mem de Sá foi o governador que em pouco tempo conseguiu conter os índios e dominá-los, possibilitando com isso a presença do missionário catequizador. O padre Anchieta fez essa grande epopéia com o triunfo da colonização portuguesa, a que fará eco o grande poema épico de Camões, nove anos mais tarde.
Em ambas as obras pode-se encontrar a exaltação de um herói. Na obra “Os Lusíadas”, esse herói a princípio parece ser Vasco da Gama, por sua viagem por mares nunca dantes navegados. Porém no decorrer da história, pode-se perceber que na realidade, como o próprio título da obra indica o herói desta epopéia é coletivo, os Lusíadas, ou os portugueses.
Isso fica claro, quando nas estrofes iniciais do discurso no concílio dos deuses, surge à orientação do autor:


“ Eternos moradores do luzente
Estelífero pólo, e claro assento,
Se do grande valor da forte gente
De Luso não perdeis o pensamento,
Deveis de ter sabido claramente,
Como é dos fados grandes certo intento
Que por ele se esqueçam os humanos
De Assírios, Persas, Gregos e Romanos."
(Canto I, estrofe 24.)


Ao desenrolar de sua história, percebe-se em várias passagens a exaltação que Camões faz desse herói, celebrando os Portugueses enquanto nação, coletividade. Para isso, a obra é marcada por sucessivas e vitoriosas lutas contra mouros e castelhanos, e mostra como um país tão pequeno descobre novos mundos e impõe a sua lei no concerto das nações.

“Mas os Mouros que andavam pela praia,
Por lhe defender a água desejada,
Um de escudo embraçado e de azagaia,
Outro de arco encurvado e seta ervada,
Esperam que a guerreira gente saia,
Outros muitos já postos em cilada.
E, porque o caso leve se lhe faça.
Põem uns poucos diante por negaça.”


Assim sucessivamente, o autor Camões vai cantando durante toda a sua obra os feitos de seus heróis, os portugueses, exaltando suas conquistas, suas descobertas, sua coragem de desvendar o desconhecido, ultrapassar os limites traçados pela cultura antiga de modo a fazer aumentar esse lado heróico e exemplar da história dessa nação. Ao final do poema, surge um episódio denominado Ilha dos Amores, onde Vênus recompensa os heróis lusitanos através dos tempos, ofertando-lhes repouso nessa ilha, paraíso dedicado ao prazer, onde as ninfas os aguardam.


"Ó que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta,
Que em risinhos alegre se tornava!
O que mais passam na manhã, e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não experimentá-lo."

Já a epopéia de Anchieta narra os feitos do governador Mem de Sá, que é exaltado como herói por José de Anchieta, devido às conquistas realizadas pelo próprio. O poema é narrado a partir da figura de Mem de Sá, as lutas contra os índios e os franceses, que foi levada a cabo pelo governador, que o apresentou como herói e salvador da pátria.
O fato de Mem de Sá ser exaltado por Anchieta como herói está presente desde o primeiro livro que compõe a obra, quando se faz uma apresentação geral da situação do Brasil antes da chegada do governador, mostrada de forma caótica:

“Ó que faustoso sai, Mem de Sá, aquele em que o Brasil
te contemplou! Quanto bem trarás a seus povos
abandonados! Com que terror fugirá a teus golpes
o inimigo fero, que tantos horrores e tantas ruínas
lançou nos cristãos, arrastado de furiosa loucura!”

No segundo livro, o autor vai destacar o herói na luta contra os índios. Ao vencer os indígenas, o autor exalta o processo de conversão e de abandono dos costumes antigos, por conta dos feitos do grande governador e herói:

“ assim se expulsou a paixão de comer carne humana,
A sede de sangue abandonou as fauces sedentas;
E a raiz primeira e causa de todos os males,
A obsessão de matar inimigos e tomar-lhes os nomes,
Para a gloria e triunfo do vencedor, foi desterrada.
Aprendem agora a ser mansos e da mancha do crime
Afastam as mãos os que há pouco no sangue do inimigo
Tripudiavam esmagando nos dentes membros humanos
Há pouco a febre do impuro lhes devorava as entranhas
Imersos no ladoçal, ai rebolavam o fétido corpo,
Preso à torpeza de muitas, à maneira dos porcos.
Agora escolhem uma, companheira fiel e eterna
Vinculada pelo laço do matrimonio sagrado
Que lhe guarda sem mancha o pudor prometido.”

Anchieta ainda destaca Mem de Sá por seus valores cristãos. O herói reconhece sua ferocidade e busca amenizar com a ação da compaixão para com o índio:


“o governador ouviu com bondade essas palavras
E respondeu: “se vos fiz guerra cruel de extermínio,
Devastando os campos e lançando em vossas moradas
O incêndio voraz, levou-me a isso vossa audácia somente.
Já agora esquecidos os ódios, vos concedemos contentes
A aliança e a paz que quereis e sentimos vossa desgraça
Porem deveis vós observar as leis que vos dito.” (...)

Além desses aspectos, muitos outros são citados na obra de Anchieta sobre as características desse herói.
Em face do que foi visto até agora, pode-se concluir que “Feitos de Mem de Sá” entrelaça-se com “Os Lusíadas”. Em Camões, assim como em Anchieta, a memória e a esperança estão em um mesmo plano, o da realidade na qual se passa a história. O assunto central de Anchieta é a chegada de Mem de Sá ao Brasil, que de certa forma vivia um situação caótica, onde o herói transformou uma nação, expulsando franceses e dominando os índios. Já em “Os Lusíadas” o herói é a nação, o povo que desvendou mares nunca antes navegados e mostrou ao mundo suas conquistas e descobertas.
“Feitos de Mem de Sá” comparado a “Os Lusíadas” é uma enorme desafio. Camões e Anchieta retratam heróis de carne e osso, bravos e infalíveis, ainda mais quando se trata de uma nação. São heróis com virtude e manhas, que enfrentaram aventuras e riscos por um objetivo.
Ambas as obras são epopéias clássicas, escritas há séculos atrás, por volta do ano de 1550. Na epopéia camoniana o herói é recompensado pela imortalidade; já em Anchieta, Mem de Sá, como é apresentado, não aparece para receber louvores terrenos por seus feitos heróicos, mas para ser um exemplo de servo da vontade divina na qualidade de chefe, afastando seus habitantes do estado rude e selvagem que os impedia de serem salvos.
Em ambas as obras os heróis, tanto coletivo como individualizado, surgem como homens corajosos, empreendedores, mas de dimensões humanas, sujeitos às fragilidades e limitações, de onde se evidencia uma notável ponderação.
Bom... Estas são algumas características dos heróis presentes nas obras de Camões e de Anchieta. Duas belíssimas e importantíssimas obras de nossa literatura, clássicos épicos que contêm uma raridade inexplicável e que ainda guardam muitos aspectos para estudos no sentido de explorar suas peculiaridades.

Referências:
ANCHIETA, José de. Feitos de Mem de Sá. São Paulo: Ministério da Educação e da Cultura, 1970.
BRANDÃO, Antonio J de Souza. A poesia épica: Os Lusíadas. Disponível em: http://www.jackbran.pro.br/literatura/critica_lusiadas.html acesso em 10/04/2010 as 16:30h
CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas. São Paulo: Editora Scipione, 1960.
PINHO, Sebastião T. de. Comparações homéricas no poema De Gestis Mendi Saa. In: Humanitas- vol. L, Universidade de Coimbra, 1998.
POSSEBON, Fabrício. O épico De Gestis Mendi Saa. Dissertação (Doutorado em Letras), Universidade Federal da Paraíba, 2007.
PRADO, Edna. Camões épico: Os Lusíadas. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/3374035/literatura-aula04-camoes-epico-os-lusiadas. Acesso em: 23/04/2010 as 14:25h

Um comentário:

  1. Achei ótima a análise, usei inclusive (com a devida referência) no meu trabalho de Literatura Brasileira, na UFTM.


    Fernanda
    fernandagalera@hotmail.com

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