Podemos definir o livro numa acepção mais ampla, como sendo todo e qualquer dispositivo através do qual uma civilização grava, fixa, memoriza para si e para a posteridade o conjunto de seus conhecimentos, de suas descobertas, de seus sistemas de crenças e os vôos de sua imaginação. Ou, num contexto mais moderno, segundo palavras do próprio Lucien Febvre (Martin, 1992:15): livro é o instrumento mais
poderoso de que pode dispor uma civilização para concentrar o pensamento disperso de seus representantes e conferir-lhe toda a eficácia, difundindo-o rapidamente no tecido social, com um mínimo de custos e de dificuldades. Sua função primordial é ''conferir [ao pensamento] um vigor centuplicado, uma coerência completamente nova e, por isso
mesmo, um poder incomparável de penetração e de irradiação".

(Arlindo Machado, no ensaio "Fim do livro?")

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Fernão Cardim e seu entendimento sobre o gentio

Por Cláudia de Geus Noernberg



Entre os cronistas e viajantes que estiveram no Brasil na época quinhentista, merece destaque o jesuíta Fernão Cardim, que foi uma das mais eminentes figuras da Companhia de Jesus, permanecendo quarenta e dois anos na aldeia de Abrantes, nos arredores de Salvador, aonde chegou em 1583. Em seus registros sobre os hábitos e costumes dos índios brasileiros, Cardim também revelou características dos próprios portugueses com quem tinha contato. Especialmente por sua capacidade de analisar de modo respeitoso e coerente as diferenças culturais entre os povos ameríndios e os povos europeus, conseguiu visualizar no Brasil “um novo mundo”, concepção que se refletiu em seus Tratados da Terra e Gente do Brasil, escritos entre 1583 e 1601, de modo específico naquele intitulado Do Princípio e Origem dos Índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias.
Embora esta obra atualmente seja objeto de vários estudos históricos e literários, posto que preciosa fonte de informação, muito tempo transcorreu até que se tornasse conhecida, valorizada e devidamente publicada, sobretudo por não existirem provas concretas de que Fernão Cardim era realmente o seu autor. Quando da publicação, em 1881, da primeira edição do “tratado sobre os índios do Brasil”, o historiador brasileiro Capistrano de Abreu, ao apresentar a obra, teceu inúmeros comentários a respeito de como chegou à conclusão de que a autoria do manuscrito era mesmo de Fernão Cardim. Após analisar momentos da trajetória deste jesuíta, fazendo uma analogia entre o manuscrito e a Narrativa Epistolar de uma Viagem e Missão Jesuítica - esta última publicada em 1847 e já atribuída a Fernão Cardim, o historiador descobriu inúmeros pontos em comum, tanto nas informações que convergiam, quanto na forma de escrever, que revelava o estilo de Cardim. Isso lhe possibilitou destilar uma crítica sutil à falta de interesse dos estudiosos portugueses em publicar o referido manuscrito, considerado anônimo até o momento, e que permaneceu inédito em língua portuguesa até 1847, embora tenha sido publicado parcialmente em inglês em 1625, com atribuição a outro autor.
São estas as palavras de Capistrano de Abreu (1881):

O pequeno tratado sobre os índios que agora publicamos, ainda não foi impresso em português. Poucas pessoas examinaram-no em Évora, onde está o manuscrito original, e estas o não julgaram, ao que parece, digno de ser posto em circulação. Os ingleses não pensaram do mesmo modo: desde 1625 está ele traduzido em sua língua e faz parte da curiosa e raríssima coleção de Purchas. Foi aí que o lemos pela primeira vez e reconhecemos o seu interesse e seu valor.

Transcorrido mais de um século, Ana Maria de Azevedo (2009, p. 65 - 66), licenciada em História pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde obteve o grau de mestre com a dissertação sobre a vida e a obra do Padre Fernão Cardim, ao fazer os comentários introdutórios dos tratados na edição de 2009, define com perspicácia os méritos deste nobre jesuíta:

É notório neste autor o Homem completo, que procura captar o maior número de conhecimentos, observando tudo o que o rodeia, um humanista que procura um saber em harmonia com o viver e ainda um saber em harmonia com um novo mundo. Mas sempre um saber global, total, que consiga transmitir o maior número de informações aos seus superiores. Nele encontramos o geógrafo, que estuda a terra, o seu clima e a sua habitabilidade; o etnógrago, que descreve os povos indígenas, seus usos e costumes, com respeito e coerência; o zoólogo e o botânico, que observa com rigor a fauna e flora desconhecidas, descrevendo-as de uma forma quase visual; o cronista que traça os hábitos das populações, até mesmo os gastronômicos, e que menciona as missões dos jesuítas, os seus colégios e residências, o estado das capitanias, os seus habitantes e suas produções, o progresso ou a decadência da Colônia e as suas causas, assim como os problemas que tinham de enfrentar diariamente, alertando mesmo o poder para as questões a resolver.

A partir dessas considerações, torna-se imprescindível examinar mais atentamente os manuscritos de Fernão Cardim, com atenção especial para a sua detalhada descrição dos hábitos e costumes dos índios brasileiros.
Pelo fato de serem ágrafos, ou seja, por não possuírem língua escrita, considerou-se por muito tempo que os índios não tinham um sistema de crenças. Todavia, o testemunho dos cronistas e viajantes da época demonstrou o contrário. Cardim já inicia seu tratado sobre os índios, por ele denominados gentios, fazendo referência ao conhecimento destes sobre a ocorrência do dilúvio, embora o explicassem de modo confuso e diferente das escrituras. Afirma também que, embora os índios não tivessem conhecimento da existência do Criador, acreditavam que possuíam alma e que esta não morria. Em seguida explica que chamavam a Deus de Tupã - “pai que está no alto”, como o criador dos relâmpagos e trovões, bem como o provedor do sustento da tribo. Esses aspectos concernentes à existência ou não de um “ser criador” para os índios ainda têm sido objeto de investigação, havendo divergências entre estudiosos e etnólogos quanto ao grau de importância e quanto às atribuições de Tupã nas crenças indígenas.
Em relação aos casamentos nas tribos, existia uma preocupação especial dos jesuítas, tendo em vista ser comum entre os índios a prática da poligamia e do adultério. Isso levou os padres a tomarem a decisão de considerarem como matrimonial a união de um casal com mais de trinta anos que vivesse em comunhão com seus filhos há vários anos. Em seu tratado, Cardim (2009, p. 176-177) apresenta algumas peculiaridades a respeito da sexualidade dos índios:

Nenhum mancebo se acostumava casar antes de tomar contrário, e perseverava virgem até que o tomasse e matasse correndo-lhe primeiro suas festas por espaço de dois ou três anos; a mulher da mesma maneira não conhecia homem até lhe não vir sua regra, depois da qual lhe faziam grandes festas; ao tempo de lhe entregarem a mulher faziam grandes vinhos, e acabada a festa ficava o casamento perfeito, dando-lhe uma rede lavada, e depois de casados começavam a beber, porque até aí não o consentiam seus pais, ensinando-os que bebessem com tento, e fossem considerados e prudentes em seu falar, para que o vinho lhe não fizesse mal, nem falassem cousas ruins, e então com uma cuia lhe davam os velhos antigos o primeiro vinho, e lhe tinham a mão na cabeça para que não arrevessassem, porque se arrevessava tinham para si que não seria valente e vice-versa.

A citação acima demonstra o quanto as anotações de Cardim se detiveram em questões que outros cronistas sequer mencionaram em seus registros. O navegador português, Pero Lopes de Souza, por exemplo, em seu Diário da Navegação, publicado em 1839, se preocupou mais em detalhar o cotidiano, o caminho que percorreu com a nau, os lugares por que passou, a situação geográfica, fazendo poucas referências aos índios, algumas inclusive errôneas, como o justificar que são muito tristes porque choram muito. No entanto, o tratado do padre Fernão Cardim (2009, p. 182-183) explica de maneira acertada o ritual do choro:

Entrando-lhe algum hóspede pela casa a honra que lhe fazem é chorarem-no: entrando, pois, logo o hóspede na casa o assentam na rede, e depois de assentado, sem lhe falarem, a mulher e filhas e mais amigas se assentam ao redor, com os cabelos baixos, tocando com a mão na mesma pessoa, e começam a chorar em altas vozes, com grande abundância de lágrimas, e ali contam em prosas trovadas quantas cousas têm acontecido desde que se não viram até aquela hora, e outras muitas que imaginam, e trabalhos que o hóspede padeceu pelo caminho, e tudo o mais que pode provocar a lástima e choro.

Um tema que interessou muito a Cardim foi o modo pelo qual os índios criavam os filhos, já que na Europa as crianças eram criadas à margem de seus pais, sendo amamentadas por amas, o que eliminava qualquer possibilidade de criação de laços afetivos entre as mães e os recém-nascidos. Ele percebeu o quanto os índios amavam seus filhos, pois jamais os deixavam, levando-os presos em tipoias para todos os lugares, sem lhes aplicar qualquer castigo, por estimarem mais fazer bem aos filhos que a si próprios. Justificou também a estima dos índios pelos padres, tendo em vista que estes ensinavam os seus filhos a ler e escrever, contar e cantar.
A antropofagia, assunto incessantemente abordado pelos cronistas em seus manuscritos, foi referenciada com tanta riqueza de detalhes, que facilmente impressionaria um leitor mais desavisado. A descrição feita por Cardim não deixa de incluir o ritual que se fazia posteriormente com o matador do inimigo, cujo sofrimento representava uma espécie de purificação para afastar de perto de si a alma do morto.
O capítulo do tratado que se refere à diversidade de nações e línguas, no qual o padre enumerou cerca de cento e quatro nações ameríndias, a grande maioria delas não mencionadas nos textos quinhentistas, estabelece algumas distinções entre dois grupos considerados principais: os Tupis e os Tapuias. Os Tupis eram os que viviam na costa do mar e falavam uma só língua, de fácil aprendizagem, sendo suscetíveis à conversão ao cristianismo, pois tinham grande admiração pelos padres da Companhia de Jesus. Já as nações de Tapuias, inimigas dos Tupis e contrárias até mesmo entre si, falavam diferentes línguas e eram de difícil conversão, sendo apenas algumas nações de Tapuias amigas dos portugueses. A partir desses dois grandes grupos, Cardim descreveu características de cada uma das subcategorias de nações ameríndias. Até o momento, nenhum estudioso conseguiu apresentar uma explicação convincente sobre a origem de todos os nomes citados por Cardim.
Não houve preocupação de incluir neste trabalho trechos da Narrativa Epistolar, de Fernão Cardim, posto que as informações nela apresentadas, quanto aos costumes e hábitos dos ameríndios, são muito semelhantes às do tratado ora analisado, sendo este último considerado mais adequado ao estudo, conforme justifica o historiador Capistrano de Abreu (1881):

Há simplesmente duas diferenças; a Narrativa foi dirigida a um amigo e nela o autor deixou seu estilo correr mais livremente, desenvolvendo certos pontos de preferência, referindo-se a objetos conhecidos pelo seu leitor; no opúsculo sobre os índios ele é mais conciso. Além disso, a Narrativa trata dos índios apenas como acidente da viagem, como adorno da paisagem; no Tratado, os índios são o objeto principal, e assim os esclarecimentos são mais condensados e encadeados uns aos outros.

Os manuscritos de Fernão Cardim contribuíram enormemente para o enriquecimento cultural nacional, servindo como valiosa fonte informativa para as gerações que se seguiram, inclusive de escritores, que se deixaram envolver pelo fenômeno nativista e o fizeram transparecer em seus textos. Convém, pois, lembrar o dizer de Alfredo Bosi (1972, p. 16), em História Concisa da Literatura Brasileira, sobre a influência positiva que a literatura de informação exerceu sobre alguns célebres escritores brasileiros:

E não é só como testemunhos do tempo que valem tais documentos: também como sugestões temáticas e formais. Em mais de um momento a inteligência brasileira, reagindo contra certos processos agudos de europeização, procurou nas raízes da terra e do nativo imagens para se afirmar em face do estrangeiro: então, os cronistas voltaram a ser lidos, e até glosados, tanto por um Alencar romântico e saudosista como por um Mário ou um Oswald de Andrade modernistas. Daí o interesse obliquamente estético da “literatura” de informação.

Finalmente, não merecem ser ignoradas as palavras de Rodolfo Garcia, um dos maiores estudiosos da obra de Fernão Cardim, em introdução à edição publicada em 1980 (apud AZEVEDO, 2009, p.10):

Quantos estudem o passado brasileiro hão de reconhecer que no acervo dos serviços prestados às nossas letras históricas existe em aberto grande dívida de gratidão para com esse meritório jesuíta. De fato, entre os que em fins do século XVI trataram das coisas do Brasil, foi Fernão Cardim dos mais crédulos informantes, em depoimentos admiráveis, que muita luz trouxeram à compreensão do fenômeno na primeira colonização do país. Foi dos precursores da nossa História, quando ainda o Brasil, por assim dizer, não tinha história. [...] Seus depoimentos são os de testemunha presencial, e valem ainda mais pela espontaneidade e pela sinceridade com que singelamente os prestou.

A valorosa contribuição histórica e literária prestada por Fernão Cardim deixa, sem dúvida, um convite inescusável a esse mergulho no passado, que não se destina apenas a teóricos, mas dirigi-se a todos aqueles que aspiram a um conhecimento mais aprofundado sobre o Brasil quinhentista e, principalmente, sobre seus primeiros habitantes. De fato, é uma leitura que não se pode dispensar.

Referências bibliográficas:
BOSI, A. A condição colonial. In:____.História concisa da literatura brasileira. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1972. p. 11-29.
CARDIM, F. Tratados da terra e gente do Brasil. Disponível em: Acesso em: 08 jun.2010.
CARDIM, F. Dos princípios e origens dos índios no Brasil (introdução de Capistrano de Abreu). Disponível em: Acesso em: 11 jun. 2010.
CARDIM, F. Narrativa epistolar de uma viagem e missão jesuítica. Disponível em: Acesso em: 08 jun. 2010
SOUZA, P. L. Diário da navegação da armada. Disponível em: Acesso em: 08 jun. 2010.

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